Formação: Ensino jurídico queer

Formação: Ensino jurídico queer

Cecília, Gabriel e Larissa

A Formação 5 do Núcleo Direito, Discriminação e Diversidade teve como tema Ensino Jurídico Queer e contamos com a participação de uma pessoa convidada: Juno Cipolla, que é trans não-binário.

O objetivo da formação era levar à reflexão sobre as formas como se poderia queerizar o ensino, especialmente aquele da faculdade de direito. Ocorre que, para tanto, as alunas precisariam entender o que significa “queerizar”, ou, ainda, o que a Teoria Queer propõe. Desse modo, a formação foi dividida em duas fases: (i) preparação e (ii) discussão em sala de aula. Esta última, por sua vez, aconteceu em três momentos: (i) Check-in para empatia; (ii) “De menina e de menino” e (iii) Reflexões sobre teoria queer e ensino. Ao final, sempre reservamos um momento para feedback sobre as dinâmicas e a discussão.

A preparação: aprendendo de forma continuada e homeopática

Desde o estudo de caso sobre o universo trans*, o grupo responsável propôs uma formação continuada das alunas, tendo em vista a vastidão, a complexidade e a novidade do tema para muitas pessoas. Assim, a formação se iniciou semanas antes, quando as alunas começaram a se preparar para o estudo de caso (10.05), e se prolongou até a formação em ensino jurídico queer (24.05).

Antes das dinâmicas em aula, lançamos quatro “pílulas” de conhecimento ou de idéias pelo Facebook, para diversificar a aprendizagem: três antes do estudo de caso e mais uma antes da formação. As pílulas consistiam em vídeos ou textos curtos, com a temática do universo trans* e teoria queer.

Para a formação em ensino queer, sugerimos como pílula um trecho (dos 13min aos 18min) do média-metragem, “Reprovados?”, sobre secundaristas[1]. No trecho, as alunas do ensino médio discutem a diversidade na escola – gênero e identidade de gênero, orientação sexual, raça – e como ela afeta a vida de cada uma das estudantes do colégio.

As alunas do DDD, então, deveriam ver o vídeo e refletir sobre as diversidades e discriminações na sala de aula e de que formas seria possível pensar em um ensino queer, que lidasse com essas dificuldades e diferenças.

Além da pílula, também era esperado que as alunas se preparassem para a formação a partir da bibliografia recomendada. Como leitura obrigatória indicou-se:

  • Miskolci, Richard. Teoria Queer: Um aprendizado pelas diferenças. Autêntica Editora: Belo Horizonte 2015. Capítulo 3 p. 55-68.
  • Brooks, Kim. Parkes, Debra. Queering Legal Education. A Project of Theoretical Discovery. Harvard Women’s Law Journal. v. 27, 2004. p. 90-136.
  • Plano de aula: Currans, Elisabeth. The Same-Sex Marriage Debate: Gay/Lesbian Rights vs. Queer Critiques of Marriage. In: Murphy, Michael e Ribarsky, Elisabeth, Activities for teaching gender and sexuality in the university classroom. Rowman & Littlefield Education. United Kingdom, 2013. p. 47-53.

E, como leitura complementar, sugeriu-se:

  • Louro, Guacira Lopes. Pedagogias da sexualidade. In: Guacira Lopes Louro (organizadora) O Corpo Educado: Pedagogias da sexualidade. 2a Edição. Autêntica, Belo Horizonte, 2000. p. 07-34.
  • Blumer, Markie. Are We Queer Yet? Adressing Heterosexual and Gender- Conforming Privilege. In: Case, Kim A. (edit), Deconstructing Privilege. Teaching and Learning as Allies in the Classroom. Routledge, NY, 2013. p. 151-169.

A discussão: compartilhando saberes e experiências em sala de aula

Após a preparação – primeira fase da aprendizagem –, as alunas se encontraram para a discussão em grupo na sala de aula – segunda fase.

O check-in: gerando empatia com o estranho, o abjeto, o queer.

Inicialmente, pedimos para que todas as pessoas – alunas, professor e pessoa convidada – se apresentassem, a partir do método “pipoca”, ou seja, sem seguir uma ordem pré-definida, mas conforme surgisse a vontade de falar.

A apresentação e o método têm, por si só, alguns objetivos. Com a apresentação, queremos (i) fazer com que as pessoas relembrem os nomes umas das outras, o que não aconteceria se o nome fosse dito apenas em uma das formações, trabalhando respeito e valor com relação a cada indivíduo; e, também, (ii) é importante para integrar a pessoa convidada, para que ela se apresente e também tenha a oportunidade de ouvir o nome de cada componente do grupo. Por fim, (iii) o método “pipoca” busca treinar um pouco o controle do tempo e da ansiedade, quando se gera incômodo pelo silêncio na sala de aula. Almeja-se, assim, praticar calma e paciência para esperar o tempo de cada pessoa.

Então, para a apresentação, as alunas deveriam falar (i) nome, (ii) um apelido carinhoso ou inofensivo que já receberam; e (iii) um apelido ofensivo, de preferência relacionado a gênero ou sexualidade (mas apenas se a aluna se sentisse confortável). Esse compartilhamento de apelidos desagradáveis pode gerar desconforto, com a percepção e a lembrança de momentos em que fomos diminuídas por nossas características ou comportamentos.

Todavia, como o desconforto é relacionado a situações comuns a todas, busca-se promover a empatia pela experiência de cada aluna, tanto por se identificar quanto por se solidarizar com a dor da outra pessoa. Afinal, todas nós já fomos, de alguma forma, expostas a situações de violência em virtude de questões de gênero, sexualidade, raça, classe, etc.

“De menina e de menino”: o binário e o borrão

 Em seguida, convidamos as alunas a se sentarem no chão e em roda. Colocamos no centro do círculo duas cartolinas, uma rosa e uma azul, nas quais estava escrito “De menina” e “De menino”, respectivamente. Pedimos, então, para que as alunas escrevessem, nas cartolinas, tudo aquilo que identificavam ser socialmente construído como voltado para um gênero ou para o outro – desde cores até matérias na faculdade.

As respostas foram diversas: de menino é azul, carrinho, gozo, pinto, palavrões, espaço público, empreendedor, professor da faculdade, etc; de menina é rosa, boneca, vagina, delicadeza, espaço privado, maternidade, professora de crianças. A partir do que estava escrito, começamos a questionar a binariedade e a divisão do mundo e da sociedade entre os gêneros feminino e masculino.

Então, propusemos que as alunas borrassem o cartaz com tinta aquarela. Para cada palavra ou expressão relacionada a um gênero, as alunas poderiam pensar em pessoas e em casos em que aquela divisão não se aplicaria, de modo a quebrar os paradigmas estabelecidos como “de menina” ou “de menino” desde a nossa infância. Percebemos, então, que a “menina” e o “menino” ideais não existem; não há ninguém que cumpra todas as “exigências” impostas a cada um dos gêneros. E, assim, borramos todas as palavras dos cartazes – como é a proposta da teoria queer, de borrar as normas de gênero binárias.

A partir dessa dinâmica, surgiram várias reflexões sobre: (i) a aparente necessidade de enquadrarmos as pessoas em classificações; (ii) o binarismo de gênero impondo papéis opostos e complementares a homens e mulheres; (iii) a desvalorização dos espaços que são ocupados somente por mulheres; (iv) a imposição e a naturalização de características biológicas (mulher tem vagina; homem tem pênis); (v) questionamento e subversão das idéias pré-concebidas (perguntamos: “é possível casamento entre pessoas do mesmo sexo?”, quando poderíamos perguntar: “é preciso casar?”); (vi) discursos que naturalizam e essencializam mulheres e homens e o cuidado para não reforçarmos estereótipos; (vii) o lugar do homem cisgênero heterossexual como regra e “neutro”; (viii) a incorporação de características masculinas para que uma mulher seja respeitada; (ix) a ocupação de espaços por mulheres; (x) o incentivo à criatividade dos meninos e do respeito às regras pelas meninas; (xi) o menosprezo de doenças e transtornos alimentares (como anorexia e bulimia) em virtude de padrões de gênero e beleza; etc.

Ao final da atividade, ponderamos também sobre a dificuldade de se escapar do binarismo homem-mulher nas falas e o risco de reforçar estereótipos. Além disso, consideramos a questão da interseccionalidade, tendo em vista que a vulnerabilidade de cada pessoa aumenta à medida que ela se afasta dos estereótipos e apresenta outros marcadores sociais da diferença relacionados ao gênero – como raça, classe, deficiência, etc.

Reflexões sobre a teoria queer e o ensino

“A demanda queer é a do reconhecimento sem assimilação, é o desejo que resiste às imposições culturais dominantes. A resistência à norma pode ser encarada como um sinal de desvio, de anormalidade, de estranheza, mas também como a própria base com a qual a escola pode trabalhar. Ao invés de punir, vigiar ou controlar aqueles e aquelas que rompem as normas que buscam enquadrá-los, o educador e a educadora podem se inspirar nessas expressões de dissidência para o próprio educar. Em síntese, ao invés de ensinar e reproduzir a experiência da abjeção, o processo de aprendizado pode ser de ressignificação do estranho, do anormal como veículo de mudança social e abertura para o futuro”. Richard Miskolci em Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças (grifos nossos).

Finalmente, passamos a refletir, com as alunas, sobre os textos indicados como bibliografia da aula. Para tanto, havíamos preparado algumas perguntas[2]:

  1. O que é a Teoria Queer?
  2. Durante seus estudos na faculdade, você já se sentiu um ser humano incompleto/abjeto?
  3. Que tipo de experiências foram trazidas nos textos como presentes na vida acadêmica de estudantes?
  4. De quem é o “olhar neutro” da educação ou qual a política da “escola sem política”?
  5. Como se pode pensar a sexualidade e a identidade de gênero na educação de forma queer?
  6. Quais as formas possíveis de se incorporar a pedagogia queer no ensino jurídico?
  7. Em que consistem os princípios da pedagogia jurídica queer trazidas pelas autoras?

Iniciamos o debate com a primeira pergunta “O que é Teoria Queer?”, a qual, na verdade, tomou todo o nosso tempo de discussão. Questionamos o significado da palavra queer, que quer dizer estranho, abjeto, anormal, “viado”, “sapa”, etc. Lembramos que em inglês a palavra tem um significado pejorativo, tendo sido reapropriada pelo movimento queer; mas, no Brasil, a importação da palavra sem incorporar essa ideia de subversão, acaba por “higienizar” ou “fazer a assepsia” do termo, que perde sua conotação de xingamento.

Além disso, discutimos que há duas maneiras de se abordar o queer: (i) quando se fala de gênero e sexualidade; e (ii) quando se fala de subversão das normas, de questionar o padrão, incluindo discussões sobre raça, pessoas com deficiência, etc. Também refletimos sobre o problema da validação dos corpos, que é questionado pela Teoria Queer, pois mesmo para as pessoas transexuais há a imposição de um enquadramento às normas de cada gênero – feminino ou masculino –, para que elas possam ser respeitadas em sua identidade. Ademais, falamos sobre a socialização marginal das pessoas transexuais, porque não correspondem aos padrões esperados pela sociedade.

Refletimos, ainda, sobre as propostas para um ensino queer, questionando se aquelas apresentadas pelos textos seriam suficientes. Identificamos, então, a (i) a necessidade de incluir todas as pessoas nos debates sobre opressões (mulheres e homens, trans e cis, negras e brancas, etc.), permitindo que elas questionem as normas impostas aos nossos corpos; (ii) a dificuldade de se lidar com a subversão a partir do fato de que já existem identidades menos valorizadas; e (iii) a necessidade de desconstruir padrões desde o nascimento das pessoas (“é menino!” e “é menina!”).

Nossa discussão também colocou o próprio movimento LGBT em debate, refletindo sobre os padrões que são reproduzidos. Consideramos a necessidade de se fortalecer o movimento das pessoas não binárias; a necessidade de pensar, em conjunto, as questões de identidade e de sexualidade; e, também, de destacar interseccionalidades e discutir os padrões (branco também é raça; heterossexualidade também é sexualidade, etc.).

O feedback: refletindo sobre a discussão

Ao final, sempre reservamos um momento para o feedback, considerado essencial para refletirmos sobre as dinâmicas e o debate, com o intuito de melhorarmos nossas atividades.

Assim, discutimos a necessidade e o desafio de envolver todas as alunas no debate. Isso porque, falaram mais as pessoas que já tinham algum conhecimento ou experiência ligada a gênero e sexualidade.

Infelizmente, não sobrou tempo para discutirmos a relação entre a Teoria Queer e a pedagogia. Contudo, consideramos que não seria possível falar de pedagogia queer sem que todas soubessem o que é a “Teoria Queer”.

Fotos das atividades

Foto das perguntas sobre os textos, em forma de borboleta.

 

Imagens geradas pelas alunas do DDD, especialmente pela Vitória Oliveira, para divulgação no Facebook, a partir dos textos da Formação 5 – Ensino Jurídico Queer:

 

[1] O média-metragem “Reprovados?”, publicado em 12 de março de 2016, documenta as indignações e reivindicações dos estudantes da E.E. Sapopemba contra a reorganização imposta pelo governo do estado de São Paulo, além de falar sobre problemas pontuais que vão além da reorganização.

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=nW8i2UGVzmw

[2] Recortamos as perguntas em formato de borboleta, conforme foto no anexo do relatório e pedimos para que os alunos escolhessem aleatoriamente. A primeira pergunta (“O que é Teoria Queer?”), contudo, foi escolhida pelo grupo para iniciar o debate.

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