Formação: Pedagogia Descolonial

Espírito da revolta: formação sobre pedagogia decolonial

 Andressa, Luciano e Mariana K.

O desafio decolonial

A nossa última formação do semestre partiu de referências como Allan de Rosa, Catherine Walsh e Grada Kilomba para conhecermos um pouco mais da pedagogia decolonial. São três diferentes perspectivas, muitas vezes complementares, que nos permitiram adentrar em um campo bastante rico de produção de novos velhos conhecimentos. Velhos porque sempre existiram e novos porque apenas recentemente são reconhecidos como tal.

 

Imagem de divulgação da performance “While I write” de Grada Kilomba. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=UKUaOwfmA9w.

Tratar deste tema é instigante por diversos motivos. Primeiro, por ser um tema ainda pouco explorado no meio acadêmico, e ainda menos no direito. Segundo, por pensar o conhecimento a partir de uma crítica ao colonialismo, sendo então uma tarefa de forte potencial questionador e crítico, o que a torna mais desafiadora, do ponto de vista pessoal e também coletivo. E, por fim, destaca-se o fato de que a proposta decolonial tem caráter transversal e interseccional, algo que nos obriga a extrapolar identidades estanques para organizá-las em um contexto amplo de relações.

Assim como a proposta queer, a pedagogia decolonial não parte de um molde fixo, mas o critica. Ela é resultado de uma postura desconfiada frente ao conhecimento produzido nos “centros do mundo” com olhares de dominação sobre outros espaços. Ela localiza os saberes histórica e geograficamente, contextualizando-os nesta narrativa da construção de hierarquia entre os povos.

A ideia de “descolonizar o pensamento” é também ampla. Ela pode significar uma suspeita do olhar latinoamericano frente aos saberes da Europa Central, mas também pode ser representada pela postura crítica de acadêmicos brasileiros em relação ao conhecimento “nacional” que aqueles privilegiados por acessar a universidade produzem sobre os povos nativos de nosso país.

Em face de tantos questionamentos e de tantas possibilidades, como dar um primeiro passo em nossa formação? Uma primeira reflexão foi a de que o olhar decolonial, de certa forma, esteve presente em outras formações e estudos de caso, justamente por sua transversalidade. Apesar disso, seria preciso tratar do tema de forma pouco pretensiosa e bastante “curiosa”, explorando olhares que muitas vezes passam despercebidos. Foi assim que resolvemos, na dinâmica do encontro, mesclar fórmulas já utilizadas com outras ferramentas pedagógicas.

A dinâmica

A formação se iniciou com cada integrante do grupo falando seu nome e respondendo a pergunta: “que lugar do mundo você gostaria de conhecer?”. Apesar de ser o último encontro e já nos conhecermos bastante, nós do DDD acordamos que iríamos nos apresentar todos os dias, para reforçar a maneira como cada pessoa quer ser chamada e para reafirmar nossa presença no encontro. Além disso, não é incomum que tenhamos alguém de fora do grupo participando do encontro e contribuindo para as reflexões sobre o tema.

No dia, inclusive, recebemos a visita de Juliana Bittencourt, cuja trajetória de viagens pela América Latina visitando comunidades de resistência trouxe diversas experiências e histórias interessantes para dividir conosco. Logo depois das apresentações e das respostas às perguntas, nas quais apareceram lugares muito distintos do globo terrestre, a nossa convidada passou a falar de suas andanças de uma maneira diferente, com um mapa desenhado.

 

Vista da parte interna do mapa “Mesoamérica resiste”, representando formas populares de resistência à dominação.

 

O mapa se chama “Mesoamérica resiste” e foi criado e realizado pelo “beehive collective” (coletivo colméia), composto por artistas e designers anônimos e voluntários que buscam criar ferramentas inovadoras de transmissão de conhecimento. O projeto levou nove anos para ser concluído e, inspirado na história de países do México até a Colômbia, é fruto de uma enorme pesquisa de saberes locais.

Na primeira parte do mapa, há uma perspectiva “de cima para baixo” da região, que representa, nas imagens, organismos internacionais e seus projetos de dominação sobre o território e as populações que ali vivem. Há críticas ao consumo exacerbado, à militarização, ao extermínio de povos nativos, à destruição de tradições, à imposição de culturas, ao desrespeito com os recursos naturais, dentre muitos outros problemas de um ideal de desenvolvimento e progresso que se baseia na exploração de muitos para o sucesso de poucos. É um olhar um tanto quanto pessimista sobre a Mesoamérica.

 

Mapa fechado, com a perspectiva do “Plan Mesoamérica”, destacando o projeto colonialista-imperialista de dominação do continente.

 

No entanto, na segunda parte do mapa, que tem o dobro do tamanho da anterior, a perspectiva das imagens é feita para retratar a visão de uma formiga que, das miudezas da superfície, olha para seu entorno e luta para combater a dominação e resistir. As imagens mostram assembleias e comunidades que valorizam seus saberes ancestrais para nos inspirar e renovar nossas esperanças sobre como realmente desconstruir o colonial.

O mapa é construído com uma nova linguagem, pouco utilizada no ambiente acadêmico, a artística. Além disso, ele foi pensado para que as pessoas possam se engajar nele e descobrir detalhes a cada nova busca. Embora nosso tempo de observação tenha sido limitado, foi possível descobrir inúmeros temas e pudemos aproveitar para ouvir um pouco sobre as comunidades que a Juliana tinha visitado nas suas viagens.

Uso do mapa em encontros de resistência.

Como a dinâmica do mapa foi um momento para observar e ouvir histórias, reservamos um último espaço, ainda que curto, para as discussões do grupo. Como forma de provocação para as falas, passamos fichas com frases e expressões que seriam lidas por cada um e que poderiam abrir um mundo de reflexões.

A primeira cartela aberta foi a da expressão “guerra ao terror”, na qual nos detemos durante todo o debate, porque cada fala foi puxando outra e instigando relações entre o global e o local, as históricas ouvidas na dinâmica anterior e nossas próprias experiências. Mesmo que não tenhamos aberto outras cartelas além da primeira, vários dos temas ali escondidos acabaram sendo abordados nos nossos diálogos.

A partir do questionamento do significado de “guerra ao terror”, discutimos a criação de estereótipos de “terroristas” e de uma cultura de medo que inspira ódio entre diferentes culturas. Logo após, fomos da crítica à dominação global, o novo colonialismo agora chamado de imperialismo, para uma crítica da ideia de “desenvolvimento” e do seu uso para dominar populações tradicionais, explorá-las e destruir seu modo de vida, impondo a maneira “moderna”.

Daí surgiu um paralelo no nosso cotidiano, afinal, que guerra ao terror vivemos no centro de São Paulo todos os dias? Relembramos histórias que nos lembram que a população em situação de rua tem um “rosto”, uma face marcada pelo racismo e que, mesmo sob o manto da pretensa democracia racial no Brasil, as pessoas se espantam quando encontram, na rua, uma pessoa branca de olhos claros.

Essa perspectiva do cotidiano, próxima, também nos levou a olhares críticos sobre a ideia de controle e repressão materializada principalmente na figura da Polícia Militar. Ressoou nas falas uma indignação sobre a insensibilidade da mídia e da opinião pública sobre a violência perpetrada contra jovens negros e contra pessoas trans, em especial travestis em situação de rua.

Nossas reflexões foram do plano global para o local, como um passeio por questões urbanas e sua interseccionalidade. A cada esquina, foram novas contribuições e novas possibilidades de desconstrução para erguer uma nova realidade, que respeite individualidades sem perder de foco o coletivo. Muitos outros temas foram abordados, entretanto, assim como um passeio e seus segredos, algumas das discussões não podem ser transcritas sem perder sua mágica.

A experiência como educadores

Como dissemos, falar em pedagogia decolonial nunca se mostrou uma tarefa fácil. Tentamos vencer os desafios e, ainda, motivar os debates, ao trazer a interpretação do mapa, procurando inovar para que fôssemos (assim como fomos) surpreendidos com os resultados obtidos. De um lado, traríamos a linguagem do desenho e, de outro, aproveitaríamos para valorizar o saber produzido por meio da arte que, por sua vez, foi inspirada em saberes comunitários que resistem à dominação nas Américas e que podem ser aplicados no nosso cotidiano.

Capa do livro “Pedagoginga, Autonomia e Mocambagem” do educador popular Allan da Rosa.

O encontro foi muito rápido para contemplar nossas discussões. O que ficou foi um gostinho, esperamos que para todos, de querer falar mais sobre o tema e de conhecer mais sobre os saberes que de nós são escondidos e que são tão pouco valorizados. Queremos, pouco a pouco, contemplar olhares e saberes que resistam à dominação e que sejam fruto da produção de grupos discriminados na busca da superação das desigualdades.

 

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