Yayá em cordel

De Sebastiana a Dona Yayá é um poema em cordel de autoria de Varneci Nascimento e ilustrado com xilogravura de Marina Nabuco. O folheto é resultado do projeto Yayá em cordel, pelo qual a memória e história de Dona Yayá foram expressas por meio desse gênero literário, ensejando ainda sua reflexão como bem cultural da sociedade brasileira.

A literatura de cordel é reconhecida desde setembro de 2018 pelo Iphan como patrimônio cultural brasileiro. Trata-se de manifestação cultural relevante para variados grupos da sociedade não só como expressão e gênero literário como também ofício e saber popular caracterizado pela contribuição de poetas, folheteiros, ilustradores, tipógrafos, designers, artistas gráficos, entre outros.

O poema está disponível integralmente abaixo. O folheto também pode ser baixado em formato PDF ou Epub.

Baixe o poema:

Em formato PDF (414KB)
Em formato Epub (805KB)

Autoria: Marina Nabuco

Gravura: Marina Nabuco


DE SEBASTIANA A DONA YAYÁ

AUTOR
Varneci Nascimento
Nasceu em Banzaê (BA) em abril de 1978. É graduado em História e autor de quase 300 obras em cordel, tendo publicado mais de oitenta entre as quais destacamos O massacre de Canudos (Editora Luzeiro), O Pequeno Polegar (Panda Books) e Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis (Nova Alexandria).

ILUSTRADORA
Marina Nabuco
Artista plástica e ilustradora natural de São Paulo apaixonada pelo universo da literatura de cordel. Tendo ilustrado outras publicações, corta seus tacos de madeira inspirada nos grandes mestres da xilogravura, figuras centrais de sua pesquisa. É com muita honra que ilustra este folheto com texto de Varneci Nascimento para a Casa de Dona Yayá, homenageando este tão querido centro de cultura e contando a história de sua ilustre residente.

Meu leitor, prepare a mente
Ao máximo de estatura,
Deixe-a viver uma história,
Deixe-a ver se a vida é dura,
Se transitamos tão fácil
Da sanidade à loucura.

Mentes provectas, às vezes,
Perdem as venerandas luzes
De maneira inesperada,
Feito queda de avestruzes,
Como a nossa personagem
Nascida em Mogi das Cruzes.

Aos 21 de janeiro
Nosso mundo a recebeu,
No ano de oitenta e sete
A família agradeceu,
Foi no século XIX
Que Augusta a concebeu.

Manoel de Mello Freire
Casado com Josephina
Augusta de Almeida Mello,
Conforme Deus determina,
São eleitos genitores
Daquela linda menina.

Sebastiana de Mello,
Criança, receberá,
Ainda sentindo a aura
Do período da sinhá,
O apelido carinhoso
Que a chamava de Yayá.

O pai, de Mogi das Cruzes,
Homem de muito conceito,
De uma família abastada,
O requisito perfeito
Para que, aos vinte e três anos,
Forme-se, ele, em Direito.

Manoel, além de culto,
Era alegre e brincalhão,
Dono de outros atributos,
Prestígio na região
Em pouco tempo galgou
Destacada posição.

Seguiu carreira modelo
Das elites paulistanas,
De bacharel a político,
Mas foi queimando as pestanas,
Que ascedeu à Assembleia
Nas causas provincianas.

Os Mello Freire moravam
Num palacete imponente
Na Rua Sete de Abril
À família pertinente.
Em dois andares vistosos
Dignos de gente influente.

Quando em mil e novecentos
Começaram as agonias:
Dezembro devastador
Apagou as alegrias
Com a morte do casal
No período de dois dias.

Sebastiana contava
Com os seus quatorze anos.
Seu irmão Manoel Júnior
Sentiu o peso dos danos
Entrou na maioridade
Frágil, órfão, sem ter planos.

Aqueles jovens ficaram
A mercê da triste sorte
Padecendo desse estrago
Perpetrado pela morte.
Restou-lhes seguir a vida,
Cuidando daquele corte.

Foram levados ao seio
Da estimada madrinha
Que era dona Eliza Grant,
Cuja ascendência tinha
Raízes americanas,
Pois era de lá que vinha.

Manoel, no testamento,
Pareceu prever os fins
Porque deixou um tutor
Supondo coisas ruins.
O político liberal
Chamado Albuquerque Lins.

Herdaram vários imóveis
Em São Paulo e região.
Ele, estudando Direito
Em nome da tradição.
E ela buscando a paz
Para o jovem coração.

Decorridos cinco anos
Júnior desapareceu.
Numa viagem marítima
Foi dito que enlouqueceu
Jogou-se no mar bravio
E aos vinte e três faleceu.

Viu-se Yayá solitária
Tendo no colo a tristeza.
Os seus dezenove anos
Não lhes pediam fraqueza,
Porém o golpe da vida
Foi de amargura e dureza.

Enquanto seus pais viveram
Ela teve um professor
Antônio Barros Barreto,
Bondoso preceptor,
Sem eles vai ao colégio,
Ambiente formador.

Foi o Colégio Sion,
Educandário escolhido,
Para seguir os estudos.
Como lhe foi prometido,
O saber em sua vida
Era um caminho florido.

Educação esmerada
Recebeu por sua vez
Aprendeu tocar piano
Falar fluente o francês
Pintar, dominar as regras
Do velho e bom português.

Fez das horas no colégio
Sua maior referência:
Mesmo depois de formada
Encontrava com frequência
As freiras, junto às amigas,
Para lhes dar assistência.

Apesar dos seus abalos
Era gentil, carinhosa.
Com quem ela convivia,
Dedicada e amorosa.
Entrou com perseverança
Na prática religiosa.

Logo a dimensão de fé
Tornou-se primordial,
Diante daquelas perdas,
Do desgaste emocional.
Sublimou várias agruras
Na vida espiritual.

Não deixou as intempéries
Retraírem as emoções
Cultivou as alegrias
Patrocinou diversões,
Armou várias brincadeiras
Aos mais próximos corações.

Vezes servia pastéis
Recheados de algodão
Avistava os comensais
Rejeitando a refeição
Lembrava o jeito do pai
Divertido e brincalhão.

Dona Yayá se vestia
Com requinte e elegância
Conveniente à senhora
De elevada importância.
Passeava nos seus carros
Gotejando exuberância.

Às vezes Dona Yayá
Era bastante exigente,
Centralizando o comando
Atendendo prontamente
A quem dependesse dela,
Mas com olhar diferente.

Criou Eliza de Mello,
Rosa Masullo, afilhada,
A companhia constante
Preferida e agraciada
Com diversos privilégios
Fartamente coroada.

Distorciam a sua imagem
Nas colunas de jornais:
“Possui hábitos avançados
Entre as rodas sociais!
É protetora de artistas,
Tem costumes fidalgais!”.

Os íntimos a descreveram
De uma forma bonita:
“Mulher de hábitos tranquilos,
Vida social restrita,
Sem regalo ou exageros,
Nem mesmo onde ela habita”.

Todo dia dezenove,
Dona Yayá elegeu
O dia da caridade
Pois sua fé a moveu
(Devota de São José)
Foi assim que ela viveu.

Somente por uma vez
Se ausentou de nossa terra.
Nessa viagem à Suíça
Sua vida quase encerra
Por ser no ano quatorze
Da Primeira Grande Guerra.

Como único passatempo
Manteve na moradia
Da Rua Sete de Abril,
Com devida maestria
Seu próprio laboratório,
Amava Fotografia.

Entre o hobby e os passeios
Fez da vida um poema,
De vez em quando ia à praia
Banhar-se sem ter problema
Outras vezes, às fazendas
De Mogi ou Guararema.

Sobre as razões afetivas
Sabe-se bem pouco dela:
Que rejeitou pretendentes,
Que fugiu da esparrela
De quem queria dinheiro
Sem ser devotado a ela.

Conta-se que por um tempo
Cultivou uma paixão
Pelo rapaz Edu Chaves.
Abalado o coração
Por não ser correspondida.
Encerrou logo a questão.

Foi dentro dos verdes anos
Que a mulher de estrutura
Começou a dar sinais
De mudança de postura.
No final do ano dezoito
A mente fica insegura.

Dentro do seu coração
Habitou um sentimento:
A iminência da morte.
Turvou-se seu pensamento,
Mesmo sem tabelião
Escreveu um testamento.

Quando no ano vindouro
Viu-se tudo piorar,
Gritou, no mês de janeiro:
“Eles querem me matar”.
Transtornada mentalmente
Não quis mais se alimentar.

Desesperada, atentou
Contra sua própria vida.
Buscando encontrar respostas
Foi internada em seguida.
Albuquerque Lins nomeia
A própria equipe escolhida.

Foi com seus trinta e dois anos
Que Yayá perdeu a rédea
Da vida, dos bens, de tudo.
A loucura não faz média,
Quem a tem fica fadado
A naufragar na tragédia.

Porque sem a sanidade
Some o sinal do sorriso,
A vida perde a doçura,
O fulcral do paraíso,
O ostracismo completa
A ausência do juízo.

Depois de exames médicos,
Ela ficou internada
No Instituto Paulista
Porque foi interditada.
E saiu pra Rua Apa
Morar em casa alugada.

Afastada dos espaços
De sua delicadeza,
Dos lugares afetivos,
De amores, de certeza.
Cresceu-lhe agressividade
Por se sentir indefesa.

A psicose aportou
Com sua tropa real,
Yayá via o seu corpo
No sofrimento total
Enquanto a mente partia
Para a viagem final.

Ela foi acompanhada
Por bons especialistas.
O que havia de moderno
Foi incorporado às listas
De tratamento, buscando,
Para a saúde, conquistas.

Na Rua Major Diogo
Comprou-se uma residência,
As reformas foram feitas,
Preparou-se a transferência,
A fim de lhe proteger
Dos perigos da demência.

Yayá foi acomodada
Num quarto de bom tamanho.
Ali ficava à vontade
Sem perceber nada estranho.
Pensando no seu conforto
Foi feito um quarto de banho.

Com a terapêutica simples
Tratavam de sua doença:
Banhos de sol, água quente,
Mas a atenção propensa
De Eliza Grant e Elisa
Era a grande diferença.

Eliza Grant e Georgina
Seguiram junto a amiga,
Amparando-a nas dores
Daquela triste fadiga.
A amizade mais fina
É, na vida, a forte liga.

Nove anos, depois disso,
Sequelas em exagero,
Chegou a obesidade,
Diminuíram o tempero
Do seu cardápio diário,
Foi um grande desespero.

O caso se complicava,
Foi ficando mais confuso.
Um jornalista criou
Cenas para o fato escuso,
Publicando suas letras
No jornal O Parafuso.

Benedito de Andrade,
O seu medonho editor,
Achincalhava esse fato
Sem ter o mínimo pudor,
Semeava suspeições,
Sem prova ou qualquer valor.

Mau caráter, sem escrúpulos
Este sensacionalista,
Querendo se promover
Tornou-se especialista
Em repassar aos leitores
Sua visão derrotista.

O Parafuso, por anos,
Cruelmente espalhará:
“A mentira nesse caso,
Por muito perdurará.
Pois querem botar a mão
Na riqueza de Yayá”.

As notícias levianas,
Esse jornal publicava,
Dizendo que toda equipe
Somente lhe maltratava.
Embora lhe desmentissem,
A verdade não chegava.

As generosas mulheres,
De bondosos corações,
Anularam-se por ela,
Mas sofreram acusações
Sem pena d’O Parafuso,
Chegado à difamações.

Em torno da moradora
Foram se criando histórias.
Algumas se enraizaram,
Transformaram-se em memórias.
Há outras desagradáveis
Por serem difamatórias.

Pelos quarenta e um anos
Yayá ficou confinada,
Suscitando vários mitos,
Próprios de gente malvada.
Na fértil imaginação,
De todos ficou marcada.

Recebeu de suas amigas
O carinho e a ternura.
As quais administravam
A casa e sua estrutura
Até quando ela partiu
Da mansão à sepultura.

Dia quatro de setembro
Do ano sessenta e um
Dona Yayá faleceu
Sem deixar herdeiro algum
Para o patrimônio imenso,
Na época, algo incomum.

Seu coração tão sofrido
Parou seu ciclo vital.
No hospital São Camilo
Bateu pela vez final.
Foi essa a causa da morte
Dessa mulher sem igual.

Rua da Consolação,
No pomposo cemitério,
Dona Yayá sepultada,
Cumprindo o rígido critério
No qual Vida e Morte são
Para nós grande mistério.

Aos setenta e quatro anos,
Partiu em aura de glória.
Libertou-se da prisão,
Dos grilhões da trajetória
O carro da lenda para
Na estação da História.

O patrimônio de Yayá
Foi alvo de confusões.
Os interesses ilícitos,
Em falsas alegações,
Suscitou grande disputa
Debates e discussões.

Por fim o seu patrimônio
Considerou-se jacente.
Foi destinado a USP
Transformou-se em um presente
Para a universidade
Que o conduz competente.

Hoje, no bairro Bixiga,
Aquele que passar lá,
Vê o resumo da vida
Cujo maior alvará
Foi lavrado em monumento:
Casa de Dona Yayá.

Aberta à visitação,
Ao lazer e a cultura,
Reflexão e saberes,
Poética, literatura.
Numa distinta homenagem
Aos herdeiros da Loucura.


Varneci Nascimento
São Paulo, 11/07/2017
68 estrofes em sextilhas