comunidade usp

Infância em tempo de consumo

No centro de um novo contexto, a sociedade vivencia o amadurecimento precoce de crianças e adolescentes

Por Márcia Scapaticio

O comportamento de um adulto pode influenciar na formação de uma criança? Hábitos que antes eram exclusivos das mulheres passaram a ser adotados por meninas que há pouco ainda brincavam com suas bonecas. Aparelhos tecnológicos como telefones celulares e MP4 mostram-se companheiros inseparáveis e salões de beleza especializados no público infantil só aumentam a sua lista de clientes. Uma prova dessa situação é a tese de mestrado defendida na Faculdade de Medicina (FMUSP) pela fisioterapeuta e professora da PUC de Minas Gerais, Patrícia Angélica de Oliveira Pezzan, que comprova os malefícios que o uso indiscriminado de salto alto pode causar a meninas na fase dos 13 aos 20 anos.

Patrícia Pezzan

Patrícia Pezzan

Na opinião de Patrícia, o grande problema é que “essas garotas estão na fase de crescimento, quando muitas mudanças necessárias acontecem na proporção do corpo. Sendo assim, este é um período crucial para se definir uma boa postura e, devido ao salto alto, elas irão adquirir alterações prejudiciais que se tornarão mais agudas na vida adulta”, explica.

O apelo das novidades é muito grande, a cada dia surgem novos produtos, novas cores e tendências encantadoras para adultos e crianças, lembrando que a lógica histórica mudou. Há alguns anos, havia um número limitado de produtos que eram vendidos para o maior número possível de pessoas, o chamado mercado de massa. Atualmente, as empresas procuram se aproximar do cliente, utilizando campanhas específicas e criando produtos exclusivos para cada tipo de consumidor e as crianças estão em destaque neste mercado, ainda mais neste período de festas de final de ano.

Gisela Taschener

Gisela Taschener

De acordo com Gisela Taschener, livre-docente em teoria do consumo pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP e professora do Departamento de Sociologia da Faculdade Getúlio Vargas, as transformações nas estruturas de venda propiciaram um tipo de assédio comercial às crianças. “Agora as empresas querem conhecer o dia a dia do cliente, seus gostos e hábitos. A partir daí, forma-se um assédio comercial às crianças, que aparece tanto na propaganda dirigida a elas, quanto nos produtos licenciados de apresentadores de TV e ídolos do cinema, por exemplo.” As adolescentes avaliadas na pesquisa da FM usavam salto há mais de um ano, no mínimo quatro vezes por semana e quatro horas por dia.

Entre os problemas constatados estão as alterações na postura e na marcha, que, com o passar do tempo, podem provocar desequilíbrio muscular, dores, estresse articular e até degeneração das articulações.
Para a orientadora do mestrado, professora Silvia Maria Amado João, o estudo é transversal, ou seja, foi registrado o momento específico da postura e da marcha. “O ideal é acompanhar esses resultados e poder relacioná-los posteriormente. Um dos problemas é o uso por tempo prolongado, sem analisar o tamanho do salto e o material usado em sua fabricação.”

Silvia Maria Amado João

Silvia Maria Amado João

Na opinião da professora da Faculdade de Educação, Marieta Lúcia de Machado Nicolau, os limites do uso e do preço dos produtos adquiridos devem ser estabelecidos pela família, que podem decidir o momento adequado para a compra. “Às vezes, os pais estimulam essa postura consumista exagerada, mas se pensarmos na condição urbana, há crianças que não dispõem de locais para brincar e se atêm mais aos efeitos da mídia e dos ícones da TV.”

Tal alteração é reflexo das mudanças sociais e culturais. Só de observar uma vitrine de loja, percebemos que é difícil achar um sapato infantil que não possua um saltinho; além do já popular telefone celular. Em muitas escolas, depois do bom dia, os professores têm que pedir para todos desligarem o aparelho. “O celular pode ser de grande valia para as crianças, facilitando a comunicação com os pais, mas é preciso saber o momento adequado do uso. A educação baseada em valores sólidos é fundamental para essa nova geração”, completa.

Em todo esse processo, o equilíbrio é fundamental. Não é necessário abolir o salto alto do guarda-roupa, mas pensar com cuidado nas consequências do uso exagerado. Segundo Patrícia, “é bom mudar os hábitos e usar o salto em momentos esporádicos, em ocasiões que não fazem parte do dia comum de trabalho, optando por calçados mais confortáveis”.
Além dessa questão prática, há aspectos teóricos para ser pensados. Atualmente, os pais trabalham mais e ficam menos tempo com os filhos; de certa forma, às vezes sentem-se culpados por não se dedicarem em tempo integral . Para Gisela, “essa culpa provoca uma inversão nos valores, alguns pais substituem o convívio familiar por brinquedos ou se esforçam para realizar todos os desejos dos filhos, o que complica a situação”.

Marieta Lúcia de Machado Nicolau

Marieta Lúcia de Machado Nicolau

Segundo a professora Marieta, a escola pode ajudar os pais nesse dilema, através de textos, de músicas e atividades lúdicas que situem os alunos em um contexto mais amplo do que o seu próprio cotidiano. “Ao trabalhar em conjunto com a família, os resultados são melhores. Quando desenvolvemos o pensamento crítico, não ficamos à mercê de tudo que nos atinge, analisando questões simples, por exemplo, se você tem um celular porque dois, se tem um boné, porque outro?”

Para concluir, Patrícia faz um alerta aos pais. “Acho que a família não está observando os sinais com a devida atenção, pois é um problema que pode atingir proporções difíceis de controlar. Não me refiro apenas ao uso do salto alto de forma inadequada, mas ao consumo exagerado, que pode transformar crianças em pequenos adultos.”

Conheça a I Conferência de Marketing Infantil

Deixe um Comentário

Fique de Olho

Enquetes

As questões nas reuniões do Conselho Municipal de Política Urbana envolvem, indiretamente, transporte e mobilidade. Em sua opinião, qual item seria prioridade para melhorar o transporte público?

Carregando ... Carregando ...

Dicas de Leitura

A história do jornalismo brasileiro

O livro aborda a imprensa no período colonial, estende-se pela época da independência e termina com a ascensão de D. Pedro II ao poder, na década de 1840
Clique e confira


Video

A evolução do parto

O programa “Linha do Tempo”, da TV USP de...

Áudio

Energia eólica e o meio ambiente

O programa de rádio “Ambiente é o Meio” foi...

/Expediente

/Arquivo

/Edições Anteriores