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Por que a memória não funciona sempre?

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A associação entre sentidos e memória, a relevância biológica e o caráter afetivo são os principais responsáveis pelo arquivamento permanente das experiências vividas

 

Por Raphael Martins

Por que nos sentimos nauseados quando temos contato com um alimento que nos fez passar mal? Como nos lembramos de alguém quando sentimos o cheiro do seu perfume? Por que não esquecemos a sensação de passar no vestibular? São muitos os estudos que tentam explicar o funcionamento exato da grande responsável por isso, a memória. Dentre suas várias características, a associação entre ela e os estímulos dos sentidos vitais permite a fixação de experiências marcantes que vivemos.

“Os sentidos têm que ser encarados como um canal de entrada de informação no sistema nervoso. Ele interage com o ambiente, coletando informações para poder gerar o comportamento adaptativo. Então, os sentidos transformam as formas de energia presentes no ambiente em atividade neurofisiológica. E essas experiências podem ou não ser arquivadas”, explica Gilberto Fernando Xavier, professor do Departamento de Fisiologia do Instituto de Biociências.

Segundo ele, quando se vive uma experiência, alteram-se as conexões entre os neurônios e essas mudanças fazem com que uma espécie de circuito seja criado. Essa alteração representa uma informação, uma memória. Quando ativado fisiologicamente, esse circuito resgata essa lembrança.

Gilberto Xavier coordena o Laboratório de Neurociência e Comportamento do IB

No dia a dia, porém, é comum esquecer-se de algumas tarefas ou de fatos menos importantes, como o que se comeu no almoço da última segunda-feira. Isso acontece porque há um critério de seleção, que descarta informações menos relevantes, que não devem sobressair na memória. Nesse descarte, é possível que alguma coisa importante acabe passando, porque a informação não foi tratada com a devida importância pelo sistema nervoso.

Segundo Xavier, o esquecimento é um fenômeno comum: “Existem dois fenômenos que podem explicar isso: interferência retroativa e a proativa. A retroativa acontece quando temos uma informação guardada e, posteriormente, recebemos uma nova informação mais relevante. Nesse caso, o sistema nervoso dá prioridade para a segunda. A interferência proativa é o fenômeno oposto”. Essa sobreposição e mistura de informações sobrecarrega e estressa o cérebro, causando os esquecimentos.

A ligação afetiva é um fator indispensável para o resgate dessas experiências pela memória. Marcus Vinícius Baldo, professor do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB), explica: “Um aspecto fundamental que está associado ao que conseguimos ou não memorizar é o aspecto afetivo, o quanto aquilo te marcou, para o bem ou para o mal. É a ação de um componente emocional mais marcante”.

Para Baldo, não se costuma lembrar de experiências pouco importantes porque não há um diferencial que dê um caráter especial a ela, demandando muito mais esforço para recordar: “Por que passar no vestibular você lembra e o que você fez quinta-feira à noite é difícil lembrar? Geralmente, você tem que fazer um certo esforço para lembrar, a não ser que, especialmente nesse dia, tenha acontecido algo muito relevante”. Os acontecimentos com algum impacto emocional são muito mais propícios a ficar na memória.

Marcus Vinícius Baldo estuda a percepção humana do mundo e a tomada de decisões

A memória é essencialmente associativa e o componente afetivo é um motor muito forte de resgate de lembranças, então se os estímulos estão relacionados a uma pessoa ou situação – não só positivos, mas também negativos – a chance de resgatar a experiência é muito grande. “É o que acontece com pessoas apaixonadas ou traumatizadas”, diz Xavier.

Dependendo da sua importância e do grau de motivação envolvido, é possível guardar uma informação para o resto da vida. O vestibular, usado como exemplo, é uma vivência única e de grande investimento. Há um fator afetivo muito intenso, com envolvimento pessoal e de toda a família. A relevância da informação, do resultado desse processo, faz com que, quando se recebe a notícia, ela fique arquivada detalhadamente na memória da pessoa. É comum lembrar com quem estava o que estava fazendo, a roupa que estava vestindo, quem deu a notícia, entre outros pormenores. Xavier explica: “Essas situações desencadeiam processos que alteram permanentemente os circuitos do sistema nervoso, levando a uma memória de longo prazo”.

De fato, a grande maioria dessas associações é construída ao longo da vida de maneira aprendida, mas Baldo ressalta que há fatores associativos intimamente ligados por fatores biológicos: “Quando você pergunta se eu posso associar qualquer estímulo sensorial, em princípio, a resposta é sim, mas com o seguinte cuidado: alguns estímulos são muito mais facilmente associáveis pela relevância biológica que eles têm”. Usando o exemplo de náuseas ao sentir o cheiro de alimentos que fizeram mal em determinada ocasião, os sentidos relacionados à gustação e ao olfato estão intimamente ligados para criar essa repulsão. São esses os sentidos que percebem a possível ameaça presente naquele alimento (não a audição, por exemplo).

Baldo explica ainda que há certos estímulos naturalmente ruins e que não demandam nenhum aprendizado. Ele põe, como exemplo, gostos muito azedos, associados biologicamente a substâncias potencialmente venenosas, ou açucarados, potencialmente nutritivos. A aceitação ou repulsão a esses alimentos vêm de uma espécie de herança biológica que o homem possui.

É importante notar que o fator biológico acaba influenciando também nas reações e formas de seleção de informação, deixando, tanto fatores naturais como biológicos, interligados. Mostrando essa relação, Xavier explica: “As experiências negativas têm mais chance de gerar memórias do que as positivas. Provavelmente, porque as negativas são mais importantes de resgatar, do ponto de vista biológico, pois sinalizam um risco ou uma possibilidade”.

Apesar dos inúmeros estudos, em ciência neurológica, tudo se baseia na observação. As evidências e padrões mostrados por estudos são teses aceitas e embasadas, deixando tudo com um ar de mistério. Luiz Eduardo Ribeiro do Valle, também professor do Departamento de Fisiologia e Biofísica do ICB, comenta que os estudos atuais de neurologia são baseados, grande parte, nos estudos de Donald Hebb, publicados no livro Organização do Comportamento: “Hebb propôs essa tese de ativação conjunta dos neurônios e formação de circuitos. Muitos pesquisadores passaram a apoiar essa teoria que foi fundamentada por estudos. Os dados sugerem que seja assim, mas na ciência, alguém sempre pode provar o contrário”.

Xavier comenta que as experiências guardadas na memória pressupõem a criação de emoções. Todos os dias, vive-se uma grande quantidade de diferentes experiências, a integração destas cria uma sensação afetiva, seja positiva ou negativa. Por isso, em diferentes situações, costuma-se sentir bem ou mal, de acordo com as experiências vividas anteriormente. De maneira geral, é para isso que serve a memória: procurar no repertório de experiências passadas a decisão correta a ser tomada naquele momento da vida.

2 comentários sobre “Por que a memória não funciona sempre?”

  1. Sílvia disse:

    Há pessoas que visivelmente apresentam uma “memória privilegiada”, isto é, guardam detalhes de informações que a grande maioria das pessoas esquece. Isto denota um grau de atenção e concentração também privilegiados? Porque se a atenção é a porta de entrada da memória, o grau de relevância do assunto nem sempre precisa estar ligado a uma carga emotiva… Ou isso é treino?

    Obrigada pelo artigo,

    Sílvia

    • admin disse:

      Bom dia, Silvia.

      Entramos em contato com o professor Marcus Vinícius Baldo e ele prometeu responder pessoalmente as suas questões em breve.
      No momento, ele se encontra em uma viagem ao exterior com dificuldades de acesso à internet.

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