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O professor, que entrou na medicina pela área da fisiologia, se aperfeiçoou na identificação de ossadas e hoje presta contribuição social no reconhecimento de corpos humanos
Marco Aurélio Guimarães, docente e pesquisador responsável pelo Laboratório de Antropologia Forense do Centro de Medicina Legal da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, foi um dos responsáveis por ajudar a contestar a versão oficial sobre a morte de Arnaldo Cardoso Rocha. Descobriu-se, por meio de laudo pericial, que, ao invés de ter morrido durante tiroteio ao resistir à prisão, o militante da Ação Libertadora Nacional sofrera diversos disparos de cima para baixo, o que sugere assassinato. O professor também integra o Grupo de Trabalho do Araguaia, que busca identificar as ossadas dos mortos nessa guerrilha.
Nascido e criado em Ribeirão Preto, interior de São Paulo, o hoje docente do Departamento de Patologia e Medicina Legal da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) sempre estudou em escola pública, e passou no vestibular para essa faculdade logo cedo, aos 17 anos, em 1988.
Segundo ele, a curiosidade pela área já vinha desde criança. No entanto, as referências para a escolha da carreira diz não ter
encontrado na família, que era muito simples. O pai era alfaiate e a mãe, dona de casa que cozinhava bolos para fora. O mais velho dos dois filhos foi o primeiro, em uma família de 35 primos, a se formar em uma universidade pública. “Foi bem desafiador, fui bem ousado para a época”, diz. Mas, mesmo assim, nunca se questionou sobre a escolha da carreira. “Foi a concretização de um sonho.”
Nesses mesmos planos, o professor não se via trabalhando em hospitais, mas na área acadêmica. Logo no segundo ano, começou a iniciação científica no Departamento de Fisiologia da FMRP, em que lidava com fisiologia endócrina, hormônios e esteroides. “Era um pouco angustiante trabalhar matando – e é esta mesmo a palavra – animais. Comecei a me questionar sobre o aspecto ético disso e, por isso, ao mesmo tempo fui me envolvendo com o lado da Bioética.”
Ao final do curso, optou por não fazer residência, partindo logo em seguida para a pós-graduação. Fez mestrado e doutorado também no Departamento de Fisiologia, onde diz ter aprendido o que considera ser o top da pesquisa científica com sua orientadora, a professora Alzira Rosa e Silva, especialista em Medicina Veterinária.
Quem o convidou para ingressar na área de Medicina Legal foi a professora do departamento, Carmen Santos Martin. Como tinha muita relação com a área da Bioética, com a qual trabalhava, “acabou optando por encarar o desafio”. Segundo Guimarães, até então, a área de Medicina Legal era cientificamente muito isolada no País, especialmente na época da ditadura militar, quando ficara congelada. Em 1997, quando a professora Carmen lhe mostrou a perspectiva de trabalho nesse ramo, foi quando saiu de vez da Fisiologia e se dedicou integralmente à nova área. “Não foi nada fácil”, comenta Guimarães. E passou no concurso para docente no mesmo ano.
O pós-doutorado em Identificação Humana realizou na Universidade de Sheffield, na Inglaterra, em 2002. Nessa época, Daniel Muñoz, responsável pelo Departamento de Medicina Legal da Faculdade de Medicina de São Paulo e perito do Instituto Médico-Legal, encaminhou a Guimarães algumas amostras para que analisasse o DNA. “A revista científica Nature tomou conhecimento e se interessou, mas, à época, eu já estava voltando ao Brasil e nem achei que fosse sério, fiquei em dúvida.”
No fim das contas, a equipe da revista veio ao Brasil conhecer o Centro de Medicina Legal (Cemel) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. “Quando viram essa primeira tentativa de perícia independente que fazíamos, era fora da polícia, apontaram o Cemel como a perícia independente do País”, conta. Desse encontro resultou a matéria “Brazilian forensic medicine – Back from the dead”, publicada no periódico em maio de 2003.
Fundado em 1999, hoje o Cemel é um centro de referência. Seu Laboratório de Antropologia Forense, coordenado pelo professor, foi criado após alguns anos, entre 2004 e 2005. A Polícia Federal solicitou treinamento em antropologia para a formação de seus peritos, e assim foi firmada uma parceria entre os departamentos. Agora, ambos realizam mais um trabalho conjunto: peritos da Polícia Federal estão cursando pós-graduação com os professores do Cemel. “A partir desse contato, já que os peritos federais eram pouco numerosos, nossa equipe foi indicada pelo governo federal para o Grupo de Trabalho Araguaia”, explica Guimarães.
O Grupo de Trabalho Araguaia (GTA) faz parte da Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos do governo federal e é ligado à Comissão da Verdade. Tem por objetivo localizar, recolher e identificar os corpos de guerrilheiros e militares mortos durante a Guerrilha do Araguaia, movimento que atuou entre a década de 1960 e o início da década de 1970 no norte de Goiás (área hoje pertencente ao Tocantins), Pará e Maranhão. Para viabilizar esse trabalho, o grupo é composto por três pastas: o Ministério da Justiça, o Ministério da Defesa e a Secretaria de Direitos Humanos. Pessoas de diferentes formações, como médicos legistas, geólogos, geofísicos e antropólogos forenses trabalham em diferentes linhas de frente.
Ampliado a partir do Grupo de Trabalho Tocantins (GTT), o GTA está cumprindo uma sentença judicial imposta ao Brasil em resposta internacional aos desaparecidos políticos. E, conforme diz o professor, só no primeiro ano já identificou mais de cem ossadas.
Além dos projetos em andamento e de orientações de pós-graduação, o professor tem como objetivo dar continuidade às buscas de parâmetros nacionais para a identificação de ossadas. “Percebemos que nem todos os parâmetros internacionais funcionam à população brasileira, miscigenada. Por isso, justamente, sentimos necessidade de ter informações mais básicas, ainda que específicas, sobre nosso país.”
Em 2013, por causa do trabalho no GTA, a equipe participou também do Grupo de Arqueologia e Antropologia Forense (Gaaf), lançado pelo governo federal. “Só que decidiram colocar nessa linha de trabalho equipe de peritos estrangeiros, e suprimiram praticamente toda a equipe nacional”, conta. “Simplesmente trouxeram peritos do exterior que começaram a ditar tudo o que deveria ser feito e ainda planejaram uma metodologia falha.” Ele relata, também, que o foco estabelecido para o trabalho era identificar as ossadas, e não classificar causas de morte. “Ou seja, a possibilidade de investigar casos de tortura não era prioridade.”
Somado a isso, o professor conta que a nova ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Ideli Salvatti, justificou a contratação de peritos estrangeiros dizendo que o Brasil não tem peritos suficientes na área, o que enfureceu todos os profissionais do ramo. “Para estrangeiro existe verba, R$ 2,4 milhões gastos com uma mão de obra já existente no País, e ainda é dito que no Brasil não tem especialista.” Assim, o grupo brasileiro se retirou do Gaaf por razões técnicas e também éticas. “A nosso ver, praticamente nos pediram para não diagnosticar o material. E isso é quase como enganar os parentes das vítimas.”
No presente momento, Guimarães diz que, se tinha algo com que se interessava em contribuir, era realmente na identificação de ossadas no cemitério de Perus, mas a experiência até então havia sido frustrante. Conta que, se fosse para trabalhar com algo dentro da área pericial, gostaria de fazer algo que envolvesse as famílias das vítimas. Acredita que seja válido os parentes solicitarem na Justiça a ajuda da equipe, como assistentes e técnicos. “Com isso, poderíamos fiscalizar a qualidade da perícia que um órgão executa, se será feita dentro dos moldes adequados para o Brasil. É importante para vermos se o episódio não vai ser massacrado por preferências políticas.”
Marco Aurélio é casado e não tem filhos. Quando não está trabalhando, o professor e pesquisador dedica seu tempo a seus dois hobbies favoritos: culinária e marcenaria. Na cozinha, adora fazer suas próprias comidas, massa para macarrão, molho artesanal. Isso sem mencionar a comida indiana. “Quando morei no exterior para o pós-doutorado, deparei-me com a comida inglesa, que achei muito ruim”, diz. Viu na culinária do continente asiático uma alternativa mais saborosa.
E quando não está cozinhando, está a construir seus próprios móveis. “Para mim, essas atividades extras acabam sendo essenciais para quem lida com morte constantemente. Se não temos uma atividade manual, acaba ficando difícil de administrar. É minha forma de arejar a mente.”
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