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A necessidade de quebrar um tabu

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A necessidade de quebrar um tabu

 

Por Ana Luiza Tieghi

Drogas

Discutir a questão das drogas é importante, mas é preciso ir além do senso comum – e o mundo acadêmico pode auxiliar nessa tarefa

A lei que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad) estabelece: “Consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência”. Quando se fala em drogas, é comum pensar imediatamente naquelas consideradas ilícitas. Porém, inúmeras outras substâncias que causam dependência são comercializadas e aceitas pela sociedade.
O que, então, separa as drogas lícitas das ilícitas? Por que algumas têm seu comércio criminalizado, enquanto outras são vendidas em diversos estabelecimentos, ao alcance de qualquer interessado em adquiri-las? A questão das drogas é um tema complexo, que precisa ser afastado de avaliações maniqueístas e simplificadas.
“É parte da natureza utilizar alimentos e substâncias que não só alimentem, mas que produzam alterações da consciência”, afirma o professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) Henrique Soares Carneiro. Ele estuda a história das drogas e conta que substâncias produtoras de alterações psíquicas sempre foram consumidas pela humanidade, e até mesmo por animais. O que varia conforme o tempo é a forma de encarar esse consumo.
Drogas atualmente criminalizadas, como a cocaína, já foram vendidas como medicamentos até o final do século 19, sendo receitadas por profissionais da saúde. O álcool, que hoje é encontrado em abundância e é um dos alteradores de consciência mais difundidos na sociedade ocidental, já foi totalmente proibido nos Estados Unidos durante o período da Lei Seca, no século passado. Fatores externos às próprias substâncias influenciam na forma como elas são vistas pelos agentes reguladores, o que significa que a definição do que é lícito e ilícito muda constantemente.

O professor da FFLCH Henrique Carneiro conta que substâncias que provocam alterações psíquicas sempre foram utilizadas pela humanidade e por animais

Dados do 6º Levantamento Nacional sobre o Consumo de Drogas Psicotrópicas entre Estudantes do Ensino Fundamental e Médio das Redes Pública e Privada de Ensino, realizado nas 27 capitais brasileiras em 2010, apontam que as substâncias mais consumidas entre as meninas são os medicamentos de uso controlado, mas que são obtidos sem receita médica. São moderadores de apetite, ansiolíticos (tranquilizantes) e analgésicos, utilizados muitas vezes sem necessidade real, e que também causam dependência e problemas de saúde.

Os medicamentos, mesmo aqueles receitados por médicos, são uma das principais formas de alteração de consciência usadas por crianças e jovens. “Existem um milhão e meio de crianças utilizando ritalina no Brasil”, afirma Carneiro. A droga vem da família das anfetaminas e é prescrita para portadores de Transtorno de Déficit de Atenção e hiperatividade (TDAH), pois traria resultados como a melhora da concentração, diminuição do cansaço e maior capacidade de acumular informações em menos tempo. Por seus efeitos, é também muito consumida por estudantes e trabalhadores em longas jornadas, ou que realizem atividades que necessitem de atenção extrema.

Maria Teresa Lamberte é coordenadora do Fórum Interdisciplinar e Intersetorial sobre Drogas na Infância e Adolescência

Maria Teresa Lamberte é coordenadora do Fórum Interdisciplinar e Intersetorial sobre Drogas na Infância e Adolescência

Mas a ritalina, mesmo sendo uma droga lícita, está longe de ser uma substância inofensiva. Ela pode causar dependência química e crises de abstinência com a interrupção de seu uso. A Food and Drug Administration (FDA), agência norte-americana responsável pela regulação da produção de alimentos, medicamentos e cosméticos, aponta que a droga ainda pode ocasionar surtos psicóticos e de insônia, sonolência, alucinações, cefaleia, tontura e até mesmo aumentar o risco de suicídio. “[O uso de ritalina] é talvez o fenômeno mais grave de drogadição em nosso país”, ressalta Carneiro.
Maria Teresa Lamberte, psiquiatra do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas, afirma que hoje ocorre uma “hipermedicalização da infância e adolescência”, que irá criar uma geração de pessoas dependentes dos medicamentos. “Temos hoje uma produção mercadológica, com empresas farmacêuticas interferindo na concepção do que é felicidade, sofrimento, bem e mal estar”, conta a psiquiatra. E a influência da lógica do mercado das grandes companhias farmacêuticas chega até mesmo a outros campos da medicina, com endocrinologistas e clínico-gerais que receitam psicofármacos aos seus pacientes.

“Isso não é um ataque ao bom uso da farmacologia”, defende-se Maria Teresa. O problema estaria na atual banalização do uso desses medicamentos. A médica conta que existem pais que chegam à sua clínica pedindo a desmedicalização de seus filhos, pois estes estariam tomando quatro psicofármacos ao mesmo tempo.
Sentimentos como a angústia são naturais ao ser humano e sua presença não significa necessariamente que a pessoa precise recorrer a fármacos para superar um momento difícil. Em muitos casos, outras formas de terapia, sem o uso de remédios, podem ser adotadas. “A hipermedicalização muitas vezes é devastadora”, aponta a psiquiatra.

 

A psicóloga Celi Cavallari é vice-presidente da Abramd (Associação Brasileira Multidisciplinar sobre Drogas), entidade parceira do fórum

A psicóloga Celi Cavallari é vice-presidente da Abramd (Associação Brasileira Multidisciplinar sobre Drogas), entidade parceira do fórum

Mas por que hoje se medica tanto? “É uma patologia social dos nossos tempos”, afirma. Com o apogeu da biotecnologia, veio a noção de que os medicamentos podem transformar a vida das pessoas, e a psiquiatria teria ficado muito refém disso. A influência das indústrias produtoras de remédios também só contribui para o uso excessivo destes. “É importante termos profissionais de saúde mental fazendo um contraponto a esse discurso hegemônico que assistimos na atualidade”, explica Maria Teresa

Publicidade da bebida

O álcool é a droga mais socialmente aceita no Brasil e a que mais investe em publicidade para aumentar seu consumo. Os comerciais de cerveja, que podem ser veiculados em horários que outras bebidas alcoólicas não podem, evocam um sentimento de alegria associado ao seu consumo. Além de em sua grande maioria serem sexistas, focando no público masculino e utilizando as mulheres como prêmios a serem conquistados após o consumo da cerveja, esses comerciais possuem um apelo muito grande aos jovens. “Sou totalmente contrária à propaganda de álcool”, afirma a psicóloga Celi Cavallari, vice-presidente da Associação Brasileira Multidisciplinar sobre Drogas (Abramd). Ela conta que a cerveja é tratada “quase como um refrigerante” pela mídia, com propagandas veiculadas em horários nos quais muitas crianças estão diante da televisão. “Existe uma banalização enorme”, critica.

ReproduçãoNão é por acaso que o álcool é a primeira droga provada pelas crianças e jovens. Ele está presente nas reuniões familiares, na televisão e na cultura ocidental. Tem um peso tão grande que a maior empresa do Brasil e da América Latina é a Companhia de Bebidas das Américas (AmBev), produtora das marcas de cerveja mais populares do País.

“Drogas têm a ver com consumo”, afirma Rubens Adorno, professor da Faculdade de Saúde Pública

“Drogas têm a ver com consumo”, afirma Rubens Adorno, professor da Faculdade de Saúde Pública

“O álcool é mais acessível, pelo seu modo de fazer. Bebidas fermentadas podem ser feitas a partir de várias matérias-primas e são disseminadas em várias culturas”, explica o professor da FFLCH. Porém, assim como os medicamentos, o consumo excessivo de álcool é perigoso. Pesquisa realizada em 2011 pela Unifesp apontou que o índice de mortalidade entre viciados em álcool é próximo ao encontrado entre usuários frequentes de crack, droga largamente conhecida pela destruição que provoca em seus viciados. Além disso, já é conhecida a associação letal entre álcool e direção, responsável por mais de 20% dos acidentes automobilísticos, segundo estudo do Ministério da Saúde.

Mundo acadêmico e a sociedade

Com tantos fatores envolvidos e a grande diversidade de entorpecentes, a questão das drogas precisa ser estudada e discutida sob vários pontos de vista. Mas para que o conhecimento gerado no mundo acadêmico se dissemine pela sociedade são necessários incentivos que aproximem os pesquisadores dos cidadãos. Um exemplo é o Fórum Interdisciplinar e Intersetorial sobre Drogas na Infância e Adolescência, promovido pelo Instituto da Criança e que teve sua segunda edição em novembro 2013, na Faculdade de Medicina. Maria Teresa é coordenadora do Fórum e explica que ele surgiu a partir de uma necessidade de abordar a temática das drogas juntamente com outros segmentos da sociedade. “A droga ainda é um tabu”, afirma. A iniciativa é realizada em parceria com a Abramd. Celi Cavallari e Maria Teresa contam que o fórum tem a missão de quebrar paradigmas, promovendo uma discussão sobre o tema de forma aprofundada e livre de preconceitos.
Rubens Adorno, professor da Faculdade de Saúde Pública (FSP), e autor de estudos sobre o uso de drogas e pessoas em situação de rua, participou da última edição do evento. “Uma das grandes qualidades do fórum foi ser intersetorial, porque estou falando de um tema que é bastante complexo. Drogas têm a ver com consumo”, afirma. Essa relação tornaria os jovens ainda mais suscetíveis ao uso de entorpecentes, pois possuem um apelo maior ao consumo.
ReproduçãoCarneiro, que também participou da edição de 2013 do fórum, tem opinião que segue a mesma linha. Durante sua participação em outro evento sobre o tema, o Congresso Internacional Sobre Drogas – Lei, Saúde e Sociedade, afirmou que “o vício não é só em drogas” e deu exemplos: “A sociedade contemporânea é aditiva. Somos viciados em alimentos, marcas, televisão, internet, jogos, religião”.
Com um tema tão complexo e atual, toda troca de conhecimento é bem-vinda. A próxima edição do fórum está programada para o segundo semestre deste ano, e a coordenadora espera expandi-lo a nível nacional, com a participação de pesquisadores de universidades de outros Estados brasileiros. Também está nos planos a criação de um debate sobre a questão das drogas e a criação de rodas de conversa com usuários. “Queremos dialogar com a sociedade. Precisamos discutir mais, desmistificar, dissolver esse tabu”, afirma Maria Teresa. A psiquiatra e Celi defendem que o mais importante é conversar, não restringir. “E é preciso de pessoas preparadas para falar sobre a questão”, ressaltam.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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