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Médicos temem realizar procedimentos relacionados ao aborto

Profissionais correm o risco de ser estigmatizados

Por Clara Roman

O aborto é previsto em lei pelos artigos 124 a 128 do Código Penal, na seção “crimes contra a vida” (homicídio, infanticídio, suicídio e aborto). Nos casos em que é espontâneo, a mulher foi vítima de estupro ou não há outro meio de salvar a vida da gestante, o aborto é permitido. Nos demais, ele é punido, com reclusão de até 10 anos. Segundo Alex Leutério, advogado, pós-graduando do Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da Faculdade de Direito, se provado que o procedimento foi feito pela mulher ou com o seu consentimento (incluindo a cumplicidade de seu marido ou do médico), ela é condenada.
Segundo a doutora em antropologia social Sílvia de Zordo, autora da pesquisa qualitativa “Experiências e representações dos profissionais de saúde acerca do aborto legal e ilegal em dois hospitais maternidade de Salvador da Bahia”, apresentada na Faculdade de Saúde Pública em 24 de junho deste ano e aprovada pela Columbia University (NY, USA), do ISC-UFBA Universidade Federal da Bahia e do Conep (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa )– 2009, a lei brasileira gera uma situação paradoxal. Ao mesmo tempo em que o Sistema Único de Saúde, o SUS, oferece serviços de planejamento familiar e contracepção, existe a proibição do aborto .“Se por um lado as mulheres brasileiras podem legalmente escolher não ter mais filhos ligando as trompas, por outro elas não podem legalmente interromper uma gravidez indesejada. Por isso muitas mulheres, sobretudo as mais jovens, pobres e negras, morrem de aborto clandestino.”
Dados da PNA, Pesquisa Nacional do Aborto, feita pela ong Anis e pela UnB (Universidade de Brasília), atestam que mais de uma em cada cinco mulheres realizam o aborto voluntário durante a idade reprodutiva. Prova disso é que a curetagem pós-aborto, cirurgia realizada após complicações decorrentes do aborto clandestino, foi a cirurgia mais realizada pelo SUS entre 1995 e 2007 (levantamento do InCor, com base em dados do Datasus, do Ministério da Saúde). Nos países onde a prática é legalizada, a aspiração manual (Amiu) é o procedimento mais utilizado para o aborto. Essa técnica é muito segura e apresenta taxas baixas de complicações, menores do que o parto. “No Brasil, como na maioria dos países onde o aborto é ilegal, essa técnica é acessível só a mulheres de classe média-alta que podem facilmente ter acesso às clínicas clandestinas, onde elas são bem tratadas e bem cuidadas”, diz Sílvia. “Falta, me parece, integrar seriamente a saúde reprodutiva das mulheres nas políticas do governo brasileiro que visam a combater as desigualdades sociais, de gênero e raciais, para que nenhuma mulher brasileira seja discriminada e morra em decorrência de abortos”.

Dra. Sílvia de Zordo

Leutério afirma que a melhor defesa para a mulher que é acusada de ter cometido aborto em condições ilegais é atestar o caráter involuntário da interrupção da gravidez. Caso tenha ingerido um remédio para parar o desenvolvimento do feto, por exemplo, a mulher pode afirmar que desconhecia tais efeitos. Segundo a PNA, 48% das mulheres que fizeram aborto utilizaram algum medicamento para interromper a gravidez. O misosprostol, remédio contra gastrite, popularizou-se nos anos 90 devido a seus efeitos abortivos. Apesar de sua venda ser proibida no Brasil, ele recebe destaque pela grande quantidade de mulheres que o ingerem.
Segundo a pesquisa de Sílvia, realizada em dois hospitais públicos de Salvador, muitos médicos temem a acusação de cumplicidade no aborto. Nos documentos hospitalares, esclarecem que o aborto foi provocado por algo, mesmo que isso possa prejudicar a paciente mais tarde. No entanto, uma minoria de médicos afirma que a denúncia não é seu papel: “médico nao é policial”, afirma um dos entrevistados pela pesquisadora. O professor de Bioética da Faculdade de Medicina da USP Reinaldo Ayer de Oliveira diz que a paciente deve ser atendida do ponto de vista da prática médica, ou seja, o médico deve cuidar da saúde da mulher antes de qualquer outro procedimento. “O médico é preso ao sigilo da prática médica. Se o aborto é criminoso ou espontâneo, ele não deve se manifestar.” Outro medo muito comum que os médicos têm ao cuidar de mulheres com complicações pós-aborto é o estigma de “aborteiros”, caso demonstrem familiaridade com a Amiu (aspiração manual), técnica geralmente associada ao aborto realizado em clínicas clandestinas. A pesquisadora coloca a hipótese de que a resistência dos médicos mais velhos a aprender novas técnicas e dos profissionais das maternidades públicas à humanização do atendimento, além do medo de ser estigmatizados pelos colegas contribuem para explicar por que a curetagem é usada muito mais do que a Amiu.
Mesmo em casos de aborto legal, quando a gravidez foi resultante de estupro, a mulher encontra dificuldades para ser atendida. De acordo com norma técnica do Ministério da Saúde, a palavra da mulher já é suficiente para que o médico interrompa a gravidez. Se depois for provado que a mulher não falava a verdade o médico não pode sofrer punição. “É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima (…)”(Artigo 20, § 1º do Código Penal). No entanto, a pesquisa de Sílvia constatou que muitos profissionais não têm conhecimento disso e exigem ordem judicial ou análise de diversos setores do hospital. Tais processos burocráticos acarretam demora do atendimento, o que é danoso quando a gravidez é de risco ou encontra-se em estágios avançados. Segundo Alex Leutério, a mulher vítima de violência sexual deve realizar um boletim de ocorrência relatando o fato.
Sílvia, em sua pesquisa, encontrou muitos médicos que encaram o aborto como uma negação do papel maternal da mulher. “As mulheres continuam se considerando e sendo consideradas social e moralmente as principais responsáveis pelo cuidado das crianças, pela contracepção e pelas suas falhas.” Essa circunstância auxilia na estigmatização da mulher que realizou ou pretende fazer aborto. Muitos profissionais de saúde consideram as pacientes grávidas como as únicas pacientes legítimas no hospital, ao contrário das pacientes com aborto incompleto, mesmo reconhecendo as causas para a sua realização.
A pesquisa de Sílvia observou que muitos médicos acreditam que o aborto de fetos anencéfalos (que morrem logo após o nascimento) deveria ser legalizado. Leutério afirma que a lei não oferece proteção para as mulheres com esse tipo de gravidez. Ainda assim, muitas gestantes conseguem recursos para interromper o desenvolvimento desses fetos, através de um salvo-conduto por meio de habeas corpus.

8 comentários sobre “Médicos temem realizar procedimentos relacionados ao aborto”

  1. Lúcia disse:

    Bela matéria, parabéns repórter Clara! é uma vergonha que o aborto ainda seja discriminalizado no Brasil. em países católicos como Espanha e Itália é permitido, mas aqui…

  2. Carolina disse:

    Muito importante o debate sobre este tema.

    E de fato O Brasil é uma vergonha quando a isto, visto que é um direito da mulher optar pela continuidade de uma gravidez indesejada. Além do paradoxo que este assunto envolve, como bem destaca a pesquisadora ; poís o aborto seguro (ainda que clandestino) é feito pelas mulheres de classe média e média alta por profissionais sérios, mas que cobram altíssimos preços para a execução deste, inviabilizando o acesso a mulheres de rendas mais baixas.

    Enfim, só quando a população brasileira deixar de ser benevolente com isto é que o aborto deixara de ser criminalizado. Tem que haver demanda pública para a legalização do aborto, mas infelizmente boa parte da população brasileira continua sendo fortemente influenciada pelas igrejas (especialmente as cristas), e em geral todas elas condenam o aborto.

    Que infelicidade!!

  3. Sérgio disse:

    Este tema já foi bastante debatido e sempre vem à tona, para variar com muitas confusões e misturas. Creio que um dos erros principais seja confundir os direitos da mulher com os direitos das crianças que também não escolheram nascer. Infelizmente confundem-se também certas posições com a religião. Razão e sensibilidade, justiça e compaixão, coerência e intuição têm que ser muito bem administradas nestas discussões. Nem sempre o que a maioria faz está certo, mesmo que as leis "acolham" determinadas posições.

  4. Juan disse:

    Como atestam as pesquisas de opinião no Brasil, a imensa maioria da população é contrária ao aborto.

    Assim, o direito à vida de qualquer bebê em gestação deveria ser sempre protegido. O aborto é uma tragédia, não só para as suas pequenas vítimas, mas para toda a sociedade.

  5. Sergio disse:

    Este tema já tem sido objeto de amplas discussões. Há uma confusão entre direitos das mulheres e direto das crianças que não pediram para nascer. Outra confusão está em achar que as posições contrárias ao aborto sejam exclusivamente religiosas. A existência de leis que acolham um procedimento não indica que algo seja correto, basta ver a quantidade de impostos ou privilégios injustos que as leis acolhem. Razão, compaixão, justiça e, principalmente, uma grande honestidade ao tratar o tema são absolutamente necessárias para atuar com o mínimo de erros neste campo.

  6. antonio claudio fons disse:

    Matéria muito bem desenvolvida sobre tema complexo. Apresentou os vários enfoques necessários para a discussão do tema. Parabéns a revista.

    Acredito que ninguém é a favor do aborto. Aborto é sempre uma opção indesejada. Entretanto em face de múltiplas circunstâncias, num país com a desigualdade social do Brasil, o aborto deve ser enfrentado como assunto de saúde pública, pois o número de mortes advindas da prática clandestina é elevado.

  7. tamara roman disse:

    Matéria muito bem colocada em relação a esta questão crucial de saude publica da mulher. A maior vitima da criminalização do aborto no final é a própria mulher. Os fatos estão ai para comprovar. Não há como negar esta realidade triste. O aborto não é uma pratica desejavel para nenhuma mulher, mas precisa ser encarado como uma necssidade da sociedade de ter sua saude e vida preservadas. evitando peerda de vidas de mulheres na sua maioria jovens que não tem condições de cuidar de um filho de maneira adqequada, criando assim um contingente de craianças abandonadas pela sociedade.

    Se a prática é proibida, o estado deveria tomar a si a responsbilidade de cuidar destas crianças abandonadas e rejeitadas, e não deixa-las abandonadas pelas ruas das cidades.

  8. A questão do aborto e universal,bem ac.de crito já estava na sociedades e com o tempo varios paises criarom leis para a inibição das praticas de abortos,mas o aprendizado e conhecimento do aborto ainda e prematura tanto dos homens e mulheras independete de clace social e quanto menor a renda maior uma população desprovidas de direitos legais de uma sociedade que paga impostos de toda ordem de estado união. joão carmo

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