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História, cultura e moralismo na mesa do bar

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Após cruzar a linha que separa o beber social e o perder o controle, dependentes do álcool esbarram em tratamentos cheios de senso comum e moralismo

Por Isabela Morais

Um copo, dois copos, três copos… Quando a dependência começa a se manifestar, só muito álcool sacia corpo e mente. No Brasil, 12 milhões de homens e 5 milhões de mulheres são alcoólatras, segundo dados da Unifesp. Estima-se que 10% da população mundial seja dependente da substância. O alcoolismo é a terceira doença que mais mata no mundo. Beber tem sua importância cultural construída e bem estabelecida ao longo dos séculos. Mas quando se cruza a linha entre o “bom beber” e o “perder o controle”, o que se encontra são questões de saúde pública mal resolvidas em torno do alcoolismo.

Henrique Soares Carneiro, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), é especialista em história das bebidas. Conforme revela, a embriaguez é um estado com uma tremenda significação cultural. “A ebriedade deve ser muito mais uma história das formas culturais das ingestões e seus efeitos psicológicos e sociais do que a simples história da evolução das bebidas”, conta.

Desde o princípio de sua produção proposital, há cerca de 3.000 a.C, foram raras as organizações sociais que não usufruíram do álcool. Para todas essas culturas, Carneiro aponta a importância dos estados de embriaguez. Na mitologia grega, a ebriedade é sagrada pela figura do deus Dionísio. Na filosofia platônica, auxilia a avaliação moral da personalidade. É o principal instrumento de consagração no judaísmo e também a encarnação da própria divindade no cristianismo. Já na medicina milenar, torna-se remédio e consolo de todas as doenças. Ele completa: “Como se vê, o álcool é o principal produto utilizado em comemorações religiosas, em festas, na medicina ou na simples socialização”.

Henrique Soares Carneiro é autor do livro Bebida, Abstinência e Temperança que debate o significado da bebida, seus efeitos, sua relação com o divino e com a história das sociedade

Limites foram estabelecidos, ao longo dos séculos e em cada sociedade, para separar o bom beber do abuso. “Esses limites variam e nunca existiu um padrão de consumo adequado. Na América colonial, por exemplo, os indígenas costumavam beber até cair, mas apenas durante festividades. Já os portugueses e espanhóis bebiam pouco, mas diariamente. Cada um considerava o modo social do outro viciante”, conta Carneiro. Na nossa sociedade, prevalece a máxima “beba com moderação”.

Foi a Revolução do Álcool, no século 17, que adubou o terreno para a dependência alcoólica em massa, como acontece atualmente. “A cultura dos fermentados era mais controlada, seja em consumo ou em distribuição. Na Idade Média, o comércio acontecia num mercado restrito. No século 17, os destilados chegaram numa lógica capitalista, muito mais comercial e descontrolada”, relata.

Mas até que ponto o alcoolismo é hábito individual ou uma doença involuntária? Para Carneiro, “a sociedade capitalista moderna cria a propensão em viciar as pessoas em todas as mercadorias. A compulsividade, que gera o vício, não é uma patologia de poucos indivíduos, é um mal-estar social”.

Quem também responde a questão é Ana Lucia Marinho Marques, que defendeu na Faculdade de Medicina (FMUSP) seu mestrado sobre tratamentos para dependentes do álcool. A terapeuta ocupacional trabalhou no Centro de Atenção Psicossocial para Usuários de Álcool e Outras Drogas (CAPSad) do município de Santana do Parnaíba, onde realizou o estudo. Segundo a pesquisadora, o alcoolismo não deve ser visto como uma fraqueza.

A partir de suas experiências, Ana Lucia destaca que as histórias de vida que levam homens e mulheres ao vício são distintas. “Ficar dependente varia muito de cada um, das condições socioeconômicas, do momento de vida. Tem gente que se envolve porque está passando por alguma dor, alguma perda importante. Tem gente que fica dependente sem nenhum motivo claramente identificável”, conta.

Quanto à origem da doença, a pesquisadora afirma que mesmo entre os estudiosos o tema não é bem resolvido e por isso existem várias vertentes. “Para uma corrente mais biológica, existem grupos com uma pré-disposição genética. Outras tendências veem essa questão de um lado mais social. Também há o lado psicológico. Cada corrente vai criando uma linha de interpretação”, ela diz. A Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica a doença como síndrome de causas múltiplas, incluindo fatores genéticos, psicossociais e ambientais.

Pintura de Baco, divindade adotada pelos romanos do deus grego Dionísio, por Caravaggio. É o deus do vinho, da ebriedade e dos excessos

E até mesmo quando procura tratamento, o dependente não encontra condutas totalmente esclarecidas. Para Ana Lucia, o tratamento dispensado aos alcoólatras é atravessado por julgamentos morais muito fortes. “Culturalmente, há o discurso: ‘Se você quisesse, já tinha parado’ ou ‘isso é falta de vergonha na sua cara’. São frases muito comuns. Eu muitas vezes ouvi isso de profissionais da área. A pessoa tem um viés moral de julgamento e diz: ‘Na hora que ele quiser se curar, ele vem procurar a gente’. A prática cotidiana revela que o tratamento é muito atravessado por senso comum e por práticas moralistas”, relata.

Às vezes, o próprio usuário de álcool utiliza-se desse moralismo para se justificar. A pesquisadora diz que frases como “na hora que eu quis, eu parei” ou ainda “eu não parei antes, porque eu não queria” são ditas com frequência pelos pacientes.

Ela, então, observa: “Esse é um discurso ambíguo. O paciente diz que vai parar, mas quando tenta, não consegue. Esse é um dos sintomas mais marcantes: você continua fazendo uso daquela substância mesmo sabendo de seus efeitos negativos. Mesmo quando você tenta parar e não consegue”.

Uma coisa parece ser clara: a distinção entre dependência e abuso. De acordo com Carneiro, despertar a embriaguez e saber usá-la com sabedoria sempre foi e continua sendo um preceito central, em todo o mundo. “Mas em todas as épocas existiu o uso abusivo de bebidas alcoólicas”, conclui. Ana Lucia, então, diferencia que beber muito, apesar de nocivo, não caracteriza por completo o alcoolismo. “O que deve se entender é que a dependência está também no corpo, mas para o usuário é difícil dizer aos outros ‘eu não consigo parar’”.

2 comentários sobre “História, cultura e moralismo na mesa do bar”

  1. Marlene F.M.Amaral disse:

    Bacana esta matéria.

    Ela desnuda e separa de forma objetiva a doença, o interesse capitalista e o cotidiano social.

    Realmente eu gostei.

    Marlene.

  2. J. Schneider disse:

    O artigo tem o mérito de apresentar o alcoolismo como doença e mostrar os preconceitos associados à dependência.

    Mas acho que falou aprofundar mais algumas discussões propostas pelo professor Carneiro (por exemplo, o que é usar a embriaguez "com sabedoria"?).

    Também faltou colocar, ao lado da discussão teórica dos professores, depoimentos de pessoas que sofrem do alcoolismo, para que elas pudessem mostrar como as coisas se dão na prática, afinal os dependentes do álcool estão em toda parte, inclusive na universidade.

    Sugiro continuar enfocando o tema e discutir, por exemplo, a venda de bebidas alcoólicas na universidade. Até onde sei, isso é proibido, mas acontece livremente no campus do Butantã.

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