Prefácio de Clóvis moura

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Prefácio
      É com prazer que estamos apresentando aos leitores o trabalho da professora Miriam Nicolau Ferrara. Digo isto porque durante muito tempo convivi – e participei –  das suas incertezas e hesitações, das suas inquietações, mas, também, e sobretudo, assisti o seu trabalho quase heroico de pesquisadora, de trabalhadora científica incansável que vasculhava fontes, refazia hipóteses procurava por todos os meios ao seu alcance elaborar um trabalho que fosse capaz de esclarecer, não direi definitivamente, mas, satisfatoriamente, o universo estudado.
     A imprensa em São Paulo, no período que vai de 1915 a 1963 foi o tema escolhido. Um período longo, não apenas longo mas de difícil manipulação, pois os hiatos das fontes, as falhas de informações, a perda de material leva o pesquisador a ter de fazer um trabalho beneditino, paciente e honesto para conseguir toda a estrutura do painel pesquisado e sobre ele interpretar a sua dinâmica. Muitas vezes acompanhei de perto as suas inquietações ante as dificuldades de conseguir material. Mas, ficou de tal apaixonada pelo tema que com ele se identificou, conheceu pessoas atoras dos fatos e com eles conviveu. Daí ter conseguido massa impressionante de material: coleções de jornais, histórias de vida, depoimentos, confidências e dúvidas dos participantes da confecção dessa imprensa. Disto resultou uma enorme massa de material empírico com a qual a autora trabalhou durante muito tempo, amadureceu a sua análise e teve oportunidade, por tudo isto, de chegar a um nível de reflexão interpretativa elevado, conforme se poderá ver nas conclusões.
     É através desse material tão rico que Miriam Nicolau procura e consegue retratar o mundo ideológico do negro paulista, as suas esperanças e o seu comportamento. Retratando um contexto de incertezas, frustrações e ambiguidades, esses jornais negros expressaram as particularidades e diferenças culturais, sociais e psicológicas dos afro-brasileiros de São Paulo.
      Este esforço dos negros que através da sua imprensa – de negros para negros – reivindicavam a integração e a participação na sociedade abrangente representou uma forma alternativa de auto-definição étnica, de redescoberta do “eu” perdido ou quase perdido durante o longo período da escravidão colonial. A autora estuda e interpreta o período no qual essa imprensa circulou. Mas a autora não se contentou, para interpretar este universo com a leitura, ordenação, periodização dos jornais, mas recolheu material empírico em pesquisas de campo, conversou com seus fundadores, os veteranos que até hoje recordam este tempo com saudosismo.
     Teve, portanto, oportunidade de enriquecer a sua monografia com o calor da convivência com os seus agentes históricos e deles obteve informações preciosas e seguras que humanizaram o seu trabalho, tirando-o da frieza austera da impessoalidade para dar-lhe clima humano. Isto não invalida o seu rigor científico. Pelo contrário. Deu-lhe aquela dimensão humanista sem a qual nenhuma obra científica se afirma e permanece. Aqui, na sua forma de encarar os fatos, há muito da sensibilidade da autora, do seu modo de ver o mundo e os seus problemas.
     Manipulando com o conceito de “grupo minoritário” de Wirth ela coloca esse grupo como um interlocutor menor junto à grande sociedade, mostrando todo ou quase todo o seu comportamento através da análise das páginas dos seus jornais. Essa imprensa passa a ser, por isto, um parâmetro importantíssimo para se analisar como ela servia de veículo de solidariedade grupal, através da forma de abordar os seus problemas, sempre em face da existência de outra sociedade: a sociedade branca.
    Tratava-se, portanto, de uma imprensa alternativa que se esgotava no discurso para os negros, nela não figurando curiosamente aqueles acontecimentos maiores que modificavam a sociedade abrangente. É um sintoma da especificidade dessa imprensa que mostra, concomitantemente, como ela era fruto e reflexo de uma posição de grupo específico que se auto-identificava como tal e por isto circunscrevia o seu discurso aos seus “irmãos de cor”.
     Esta visão particular do negro paulista tinha e tem de si mesmo expressa através da sua imprensa remete-nos a um nível de reflexão global, proporcionado pela autora sobre a mundividência existencial desse grupo, o seu código de moral específico, a sua crença na educação privada como elemento de ascensão social, suas regras de etiqueta, elementos que o particularizam e diferenciam. Essa imprensa, por tudo isto, é um repositório precioso de dados para a compreensão não apenas do grupo negro, mas dos seus dramas existenciais e ideológicos.
     Num momento em que os estudos sobre o negro já estavam ficando repetitivos, inflacionados por abordagens sobre o preconceito de cor, racismo, marginalização do negro e outros temas correlatos, a autora nos dá um trabalho sobre assunto quase intocado. Afora o de Roger Bastide não temos conhecimento de ouro do porte do presente. Este aspecto inovador deve também ser acreditado à autora. Se ela consegue repensar o pensamento do grupo negro, ela, ao mesmo tempo, abre picada para que sejam usadas novas técnicas de pesquisa e sugere que se procurem novos aspectos do problema do negro para enlarguecimento do leque da temática.
    O negro no mundo dos brancos consegue, conforme nos mostra a autora, organizar-se para si transmitindo ao grupo que se sente discriminado normas de conduta através das quais ele poderá se integrar. Porque, conforme podemos ver no presente estudo, todo o discurso dessa imprensa é integrativo, isto é, do negro querendo ser cidadão, conseguir integrar-se, ser reconhecido como igual. Mesmo quando se refere à África (o que faz raramente) nunca é para pregar um movimento de retorno à mãe perdida, mas como um referencial de memória para mostrar que tem um passado, ancestralidade que deve ser lembrada e reverenciada. Por outro lado, as referências à África são quase que meramente simbólicas, muitas vezes míticas. Somente quando um fato como a guerra entre a Abssínia e a Itália acontece esses jornais registram. No mais já é o negro brasileiro lutando pela sua cidadania.
    O trabalho que será lido em seguida não apenas aborda um problema pouco estudado na área das pesquisas afro-brasileiras, mas repõe em discussão um problema significativo: a ideologia do negro urbano de São Paulo que sempre reivindicou o direito de ser cidadão brasileiro, o seu desejo de integrar-se em pé de igualdade com todos aqueles que compõem a nação. Esta ideologia de integração percorre todas as fases da imprensa negra, tema que a autora com proficiência científica e paixão abordou.
Clóvis Moura
Referência: FERRARA, Miriam Nicolau. A imprensa negra paulista (1915-1963). São Paulo: FFLCH/USP, 1986.