Estudo de caso: O ensino e as pessoas com deficiência

Estudo de caso: O ensino e as pessoas com deficiência

 Por Andressa, Luciano e Mariana K.

Escolha do tema e primeiras reflexões

Em nosso estudo de caso, escolhemos o tema “O ensino e as pessoas com deficiência”, para discutir a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5357, ajuizada pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen), contra dispositivos do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015). A ação alegava que a proibição de cobranças adicionais nas mensalidades, anuidades e matrículas de estudantes com algum tipo de deficiência por parte das escolas privadas seria inconstitucional.

Diante desse cenário judicial e com o intuito de explorar mais o tema, seguimos uma ideia compartilhada por todo o Núcleo Direito, Discriminação e Diversidade. Acreditamos que é preciso ouvir os sujeitos sobre os quais recaem os efeitos imediatos de cada processo investigado, que, no nosso caso, são as pessoas com deficiência.

A nossa primeira constatação foi a de que os movimentos sociais, em defesa deste grupo, sustentam a Lei 13.146/15 como uma vitória alcançada por meio de sua luta por direitos. Para os ativistas, a cobrança de valores adicionais é corretamente proibida pela lei, pois, se não o fosse, afastaria estudantes com deficiência do ambiente escolar, promovendo a segregação.

Um modelo de educação que incentiva a separação em escolas especiais faz com que os estudantes sem deficiência, pela falta de convívio, não aprendam a respeitar as diferenças em suas carreiras profissionais. Ademais, permite um contínuo bloqueio da concretização dos direitos das pessoas com deficiência, que se perpetua para além do meio escolar. Um ambiente escolar segregado nada mais seria que um reprodutor da discriminação para todos os âmbitos sociais.

Desde os primeiros encontros do DDD, nós temos pensado o ambiente de ensino a partir de um olhar de acolhimento das diferenças e construção coletiva. Para nós, uma escola deve considerar o ritmo de cada indivíduo, oferecer condições para que todos progridam e nela permaneçam. Todos os alunos podem se desenvolver, mesmo que utilizem recursos e tempo diversos, por isso, são essenciais os métodos inclusivos. Em outras palavras, nós, assim como os movimentos sociais, acreditamos que é necessário priorizar uma escola que promova a igualdade entre todos e que não segregue, mas agregue diferenças e permita que os diferentes perfis se sintam confortáveis na produção do conhecimento.

Partimos da premissa de que a sala de aula não pode ter barreiras, deve estar aberta. A escolha pedagógica de incluir, apesar de eventuais dificuldades, é definidora de um modelo de educação transformador. Assim, logo nas primeiras pesquisas e discussões para preparar o estudo de caso, nos demos conta de que o modelo competitivo pregado pela Cofenen seria incompatível com a realidade social, marcada pela diversidade, não apenas de desempenho, mas também de aptidões.

Com este primeiro contato, passamos ao grande desafio, o de assumirmos o papel de educadores para preparar material e conduzir dinâmicas que nos permitissem dividir o que tínhamos encontrado com a pesquisa e incentivar todo o grupo a se aprofundar e se engajar para pensar o ensino e sua intersecção com as questões da deficiência.

Educadores-educandos: a preparação do encontro

Entrevista

Nosso primeiro passo foi ir além das pesquisas e conversar com alguém diretamente ligado ao tema. Assim, entrevistamos o Professor Alberto do Amaral Junior do Departamento de Direito Internacional da Faculdade de Direito da USP. Ele possui deficiência visual e uma aproximação pessoal com o tema do ensino e das pessoas com deficiência. Esses dois aspectos garantiram que a ADI pudesse ser analisada sob um ponto de vista mais preciso e técnico, além de assegurar que alguém com mais propriedade pudesse opinar sobre a questão em pauta.

O professor foi muito solícito. Respondeu-nos com muita rapidez e nos recebeu em sua própria casa para uma conversa. A entrevista foi gravada, sendo que uma parte dela foi assistida em conjunto pelo grupo no encontro e seu total conteúdo foi disponibilizado depois, pelo youtube.

As perguntas feitas foram as seguintes:

  1. O senhor participa de algum grupo relacionado com o tema?
  2. Como o senhor entende a multiplicidade de “tipos” de deficiência?
  3. De acordo com suas experiências dentro da sala de aula (seja como aluno ou professor), o senhor possui alguma proposta de métodos de inclusão nesse ambiente?
  4. O que o senhor acha da presença dos auxiliares de ensino para pessoas com deficiência dentro da sala de aula?
  5. O senhor acompanhou a discussão da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência?
  6. Qual a sua opinião sobre a viabilidade jurídica e social da ADI 5357, ação na qual a Confederação das escolas particulares questiona a proibição de cobranças extras de alunos com deficiência?
  7. Qual a sua opinião em relação à reserva de vagas para pessoas com deficiência nos concursos públicos? O senhor acha que há a necessidade de cotas?

Dentre as respostas mais marcantes, destacamos a forte opinião contrária do professor Alberto à ADI 5357, que ele considera um absurdo e um atentado direto a vários princípios constitucionais, principalmente à dignidade e à igualdade. Outro ponto que nos chamou a atenção foi o engajamento do professor com a luta por ações afirmativas para pessoas com deficiência no mundo do direito, desde a universidade até os Tribunais Superiores.

Uma das respostas, em especial, foi crucial para definir a dinâmica do encontro. Ao falar da questão da deficiência, o professor foi incisivo ao enfatizar a diversidade mesmo dentro deste guarda-chuva. Para nós, antes, durante e depois da pesquisa inicial, fora uma grande dificuldade definir a ideia de “deficiência” e escolher uma abordagem para o encontro.

Pensando um pouco nas falas do professor Alberto e nas suas críticas principalmente à estrutura ineficiente da faculdade para receber pessoas com deficiência física, chegamos à conclusão de que a escolha mais sensata seria usar esse recorte específico. Reconhecendo a diversidade dentro do tema das pessoas com deficiência, optamos por introduzir o debate de maneira genérica, mas trazer mais conteúdo sobre a questão dos obstáculos físicos, de forma a direcionar o debate neste sentido mais bem delimitado.

Selecionando a bibliografia

Com a pesquisa inicial e a entrevista em mente, selecionamos a bibliografia para o encontro do estudo de caso. Para fomentar uma abordagem crítica e multidisciplinar do tema, escolhemos textos que tratassem de direito, ensino e de diferentes abordagens da ideia de “deficiência”, desde o olhar sociológico até a crítica radical da teoria crip. Como um aprofundamento da teoria queer, o crip (palavra em inglês que significa “aleijado”, termo pejorativo que designa “pessoas com deficiência” de maneira paralela a como o “queer” designa pessoas fora da normatividade cisgênera e heterossexual) busca questionar completamente a ideia de “eficiência” que se esconde por trás da desvalorização do corpos com deficiência e da criação de um limite entre o desejável e o indesejável, o belo e o abjeto.

Aqui, cabe uma reflexão de que, embora a teoria crip esteja presente na nossa bibliografia, ela não é tão marcante na nossa abordagem. Isso se deve, em primeiro lugar, ao fato de que, no momento em que nos deparamos com estas questões, já havíamos avançado na preparação do encontro. E, principalmente, à importância de conhecermos diversas abordagens para então criticá-las. Com um tema tão complexo, nada mais justo que levar ao grupo uma abordagem tateante, que permitisse ir conhecendo aos poucos os debates até que, por fim, pudesse construir críticas radicais e bastante desafiadoras.

Com esta ressalva, apresentamos o resultado final da bibliografia:

Textos básicos sugeridos:

1.”Direito à educação das pessoas com deficiência” – Eugênia Augusta Gonzaga Fávero

2.”Educação inclusiva: redefinindo a educação especial” – Mônica Pereira dos Santos

3. “How to crip the undergraduate classroom: Lessons from Performance, Pedagogy, and Possibility” – Ann M. Fox, Davidson College

Textos complementares:

  1. “Deficiência, direitos humanos e justiça” – Débora Diniz, Lívia Barbosa, Wederson Rufino dos Santos
  2. “Nem toda pessoa cega lê em Braille nem toda pessoa surda se comunica em língua de sinais” – Anahí Guedes de Mello, Alberto Mazzoni, Elisabeth Fátima Torres
  3. “Educação inclusiva e preconceito – desafios para a prática pedagógica” – José Leon Miguel Crochik

Diversificando o material de ensino

Como a bibliografia era extensa e havia um texto em inglês, resolvemos utilizar meios mais dinâmicos para incentivar o engajamento do grupocom o tema. Assim, construímos dois “esquemas” por meio do site prezi.com.

O primeiro deles, mais simples, trouxe algumas notas sobre a linguagem mais adequada para se referir às pessoas com deficiência. Por meio dele, buscamos destacar a relevância da linguagem como algo que transmite respeito e cuidado em relação a qualquer tema e, em especial, a características associadas a um grupo discriminado.

Imagem inicial da apresentação sobre linguagem no prezi.

Refletimos também que existem diversas maneiras de apropriar-se da linguagem e que várias pessoas pertencentes a grupos discriminados aceitam termos pejorativos ou mesmo os revertem a seu favor, como é o caso do crip e do queer. No entanto, destacamos a diferença entre a postura destas pessoas e a nossa, enquanto grupo que se propõe a conhecer e a discutir a temática da discriminação em sua intersecção com o ensino do direito. Do ponto de vista pedagógico, o mínimo esperado é que tomemos, coletivamente, o máximo de cuidado para não reproduzirmos opressões por meio da linguagem.

Já no segundo esquema, fizemos um breve fichamento do texto indicado para a bibliografia que estava em inglês. Seguindo a própria proposta do texto, de ser uma proposta em aberto, a arte do esquema foi feita em espiral, sem que houvesse, imagética e textualmente, um fechamento das discussões. O texto, com um título polêmico à primeira vista, “Como aleijar a aula de graduação?”, vincula-se ao olhar da teoria crip e procura apresentar diversas formas, especialmente artísticas, de trazer o tema da deficiência para o ensino superior.

Imagem inicial do prezi com o fichamento do texto de Ann M. Fox

A hora do encontro

O cuidado com a linguagem

É importante ressaltar que a primeira de nossas preocupações durante o processo de preparação do estudo de caso foi o cuidado com a linguagem e a nossa busca em repassar esta “pulga atrás da orelha” para todo o grupo.

As palavras podem ser tanto um meio de opressão, quanto de revolução, de forma que buscamos usar as terminologias corretas, e desconstruir nossos conceitos. Entender a necessidade de não ofender é tão importante quanto exaltar as finalidades do movimento social, ou mesmo exigir a igualdade, pois a discriminação é estrutural e se reafirma na cultura, na educação e até mesmo no direito. Por isso, nos propusemos a conversar, esclarecer dúvidas e apontar eventuais problemas de linguagem na dinâmica do grupo, para que nos educássemos em conjunto.

Dinâmicas

Como de costume, durante os encontros do núcleo de DDD, os grupos responsáveis pelo tema da semana têm a responsabilidade de criar dinâmicas para fomentar o debate. Uma grande dificuldade que encontramos para tratar do assunto “pessoas com deficiência” foi encontrar uma dinâmica que pudesse envolver os participantes sem banalizar os diversos tipos de deficiência, uma vez que não tínhamos conhecimento de nenhum integrante do grupo com alguma experiência com o tema.

Decidimos, então, iniciar o encontro com uma dinâmica para desenvolver empatia. Em um primeiro momento, perguntamos a cada um qual era seu lugar preferido em São Paulo, depois mostramos alguns cartões com adaptações necessárias para que pessoas com deficiência pudessem frequentar os mais variados ambientes sem muitas dificuldades. A ideia foi fazer com que cada um refletisse se o seu local preferido era acessível para todos e também demonstrar as diferentes maneiras capazes de contribuir para essa acessibilidade.

Na segunda dinâmica, usamos alguns cartões com imagens que mostravam formas/instrumentos para aumentar a acessibilidade de pessoas com deficiência (nesse caso, consideramos vários tipos de deficiências físicas, como auditiva, visual, entre outras) nos mais diversos espaços.

Corrimão nas paredes para auxiliar a locomoção de pessoas com deficiência visual.          

Rampas e caminhos cimentados para facilitar a mobilidade de pessoas em cadeiras de rodas.

Cada integrante do grupo podia pegar um desses cartões e refletir se os locais que frequenta (em especial a faculdade e a escola) possuía aquele meio de acessibilidade. Com essa dinâmica, pudemos observar que muitos daqueles meios não eram conhecidos pelo grupo. Além disso, também concluímos que muitas dessas adaptações não são aplicadas nos espaços públicos, evidenciando como não há uma preocupação com a acessibilidade destes locais, algo que contribui para a segregação das pessoas com deficiência.

Além disso, refletimos sobre como várias das medidas de acessibilidade poderiam ser úteis para qualquer indivíduo, independente de possui deficiência. Nossos corpos são diversos e a interação de cada pessoa com o espaço depende de características muito variáveis, como altura, peso, força, entre outras.

Degraus com reforço antiderrapante e contraste para ajudar pessoas com deficiência visual.

Uma discussão que merece destaque tratou da fabricação de móveis com quinas arredondadas para evitar acidentes. Esta é uma medida que melhoraria em larga escala a acessibilidade de salas de aula para pessoas com deficiência, tanto visual quanto física, mas não somente. Seria um ganho para todos os estudantes. Radicalizando a ideia de inclusão, tudo deveria ser pensado com foco na segurança e na acessibilidade física para qualquer corpo, de forma a derrubar as barreiras físicas de ensino e a priorizar a atenção a todos os aspectos da educação.

Sinalizador que emite luz e som para alertar os pedestres quando os carros entram e saem de garagens.

Depois das dinâmicas de empatia, assistimos juntos a um trecho da entrevista com o Prof. Alberto, que tratava de ações afirmativas para pessoas com deficiência e da (in)viabilidade jurídica da ADI 5357. Depois, passamos a uma breve discussão do grupo especificamente sobre essa questão jurídica.

Infelizmente, o encontro não foi suficiente para nos aprofundarmos nos debates, porém, o grupo foi além das nossas reflexões iniciais para a seleção do tema. Logo nas primeiras intervenções, destacou-se a posição contrária à ADI, dada a importância de olharmos para a escola como um espaço de educação e não como um local onde se vende o serviço de “depositar conhecimento”.

Para o grupo, não faria sentido que os custos de uma educação inclusiva recaíssem apenas sobre os ombros da família do estudante com deficiência, uma vez que a diversidade presente seria um benefício e um ganho educacional para cada integrante do ambiente escolar. Na verdade, cada aluno é especial e precisa de uma atenção específica que não pode ser mensurada no valor da mensalidade. Assim, fica claro que a intenção da ADI 5357 em permitir a cobrança extra de pessoas com deficiência é claramente discriminatória e contribui para a segregação e a desvalorização de pessoas que destoam do padrão social.

Seguir refletindo e questionando

Para nós, foi um desafio tratar do tema das pessoas com deficiência, justamente por reconhecermos sua complexidade e as múltiplas possibilidades de abordagem. A definição do tema e a preparação do encontro foram duas experiências únicas para nós, porque tudo foi sendo construído passo a passo, sem grandes moldes e com pouco conhecimento prévio sobre o tema. Tínhamos muito interesse e uma grande preocupação em sermos cuidadosos para não cairmos em armadilhas de reprodução de opressões.

Entendemos, durante as discussões, que o tempo foi pouco para tantas nuances que poderiam ser debatidas pelo grupo. Além disso, apesar de termos colocado a viabilidade da ADI 5357 como a pergunta central do estudo de caso, fomos navegando por outros mares e encontrando pequenos detalhes cruciais para um ensino inclusivo, de tal forma que acabamos relegando a própria discussão jurídica para segundo plano, tanto na bibliografia, quanto nas dinâmicas do encontro.

Para nós, a prioridade acabou sendo despertar a empatia de cada integrante do grupo para que cada um pudesse também sensibilizar-se pela causa e questionar-se sobre como contribuir para uma sociedade mais igual em que a “eficiência” não seja requisito para a garantia de direitos e de dignidade. Sabemos que um encontro foi pouco, mas esperamos continuar discutindo o tema, tanto dentro do DDD quanto nos mais diversos espaços.

 

 

 

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